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“Joker”: pequeno como nós

Foi-nos prometido (com uma insistência, no mínimo, aflitiva) que “Joker” não seria um filme de super-heróis. Enfim, por razões comerciais, as imagens lá teriam de vir disfarçadas, mas sem por isso perderem a sua urgência – onde se vê a história da ascensão de um super-vilão, deverá ver-se um certo mal-estar civilizacional, uma certa raiva abstracta perante a falência das democracias liberais; onde se vê Gotham, deverá ver-se Nova Iorque, Paris, Hong Kong… Era isto que nos asseguravam, como se o acto de filmar não contivesse em si o prazer da ocultação, e como se o cinema dos super-heróis estivesse condenado a uma menoridade das formas, uma superfície rasa, unívoca, que nada terá a dizer sobre o contemporâneo e aquilo que de mais complexo haverá nele. Havia, portanto, razões de sobra para ficarmos desconfiados.

Enquanto isso, um extensíssimo aparelho mediático de sincronização de consciências, tão ou mais potente que o do blockbuster comum, ia anunciando o filme como inevitável – e o Leão de Ouro ganho em Veneza dava o consentimento “cinéfilo” a todo o processo. Mas entre tantos teasers, trailers, excertos e cartazes, uma coisa saltou à vista, ou melhor dizendo, capturou o nosso olhar: foi a fabulosa dança de Joaquin Phoenix, que parecia introduzir uma possibilidade de fuga, uma zona de indeterminação no filme. A liberdade daquele corpo não “rimava” com a sombra dos arranha-céus, nem com as banalidades que se ouvem acerca da tragicomédia da vida, muito menos com o subtexto pretensamente crítico do enredo. Por momentos, acreditámos que vinha aí Zaratustra em vez de um Travis Bickle regurgitado. Todd Phillips, infelizmente, não nos manteve por muito tempo nessa ilusão – lá haveria de chegar o dia da estreia.

O grande tiro na cabeça do filme é a sua vocação neurótica, que o neutraliza desde a primeira cena. Tudo no argumento, na encenação, na montagem, e inclusive na banda-sonora, concorre para sublinhar uma indignação que, não sendo dirigida contra um objecto particular, não se esgotando neste ou naquele problema do quotidiano, é ao mesmo tempo demasiado inconsequente para constituir o indignado como sujeito político. Trata-se antes da pura reflexividade da comunicação: comunico a minha vontade de comunicar! O que faz este Joker com o seu incontrolável riso de protesto senão afirmar continuamente “estou aqui, estou indignado, triste, louco, revoltado”? Esta afecção que aponta para si mesma enquanto evidência reduz o gesto político do filme de Todd Phillips à mesquinhez de um tweet.

Bom, sejamos justos, uma publicação incendiária numa qualquer rede social teria, pelo menos, o seu referente. A revolta deste filme, por sua vez, nem remetentes tem. Lembramo-nos de uma cena em que se lê num jornal um cabeçalho divertidíssimo (que cito de memória): “Mata os ricos: um novo movimento”. Mas quem são estes ricos que acabam mortos? E quem são os pobres que os matam? Não queríamos que se personalizasse a classe, nada disso. Todavia, exigia-se ao filme uma coragem essencialmente política que ele não tem: correr o risco de se enganar no alvo, preferir o erro à alegoria. Kafka, por exemplo, pode escrever “o castelo”, “um homem”, “a lei”, e com essas palavras dizer o absolutamente necessário. Mas o compromisso sociopolítico declarado no argumento de “Joker” não sobrevive a este silêncio. A certa altura, o Joker chega mesmo a insurgir-se contra uma “sociedade” (é o termo por ele usado) e não se percebe muito bem a quem ou a que coisa o nosso angustiado protagonista se está a referir – será um super-vilão com esse nome, será um conceito de uma retórica libertária americana, ou será um grito mais que justo, mais que sentido, ao qual o espectador também pode juntar o seu? Num filme onde o “social” se resume à sádica reiteração de um único episódio (a humilhação pública de Joker), nem será preciso generalizar para obter a tal “sociedade” – o generalizado é já o ponto de partida.

É uma pena que uma interpretação tão física como a de Joaquin Phoenix, tão indesmentivelmente presente, seja posta ao serviço da neurose e dos artifícios da crueldade gratuita. Ele bem esbraceja, mas o seu Joker não chega a levantar voo por culpa de um guião que se esforça a todo o momento para o familiarizar, para o tornar pequenino como nós, do lado de cá do ecrã. Em suma, o programa do filme é determinado pela patologização da loucura do protagonista – afinal parece que há uma explicação médica para este riso, não se assustem, sou um de vós! –, à qual se junta até o indispensável segredinho sórdido de infância. Garante-se, pois, que tudo fica imediatamente reconhecível, e os constantes reenvios para o cinema de Scorsese também cumprem esta função. Saímos da sala cheios de saudades desse buraco negro, autêntico filme dentro do filme, que era o Joker de Heath Ledger. Não se parecia nada connosco.

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