10-Cloverfield-lane-2016

“10 Cloverfield Lane” – O Subterrâneo Sem Respiro

Da micro-metrópole de “Cloverfield” para o interior não-urbano deste “10 Cloverfield Lane”, o medo continua a proliferar, insidiar e marcar. O ataque é aludido, é ato pré-conduzido e ante-feito, serve como barreira criadora do receio da exterioridade inimiga e desconhecida. Se, em “Cloverfield”, a fuga era vectorizada para o exterior, para as ruas, com as massas em expansão caótica e rápida, em “10 Cloverfield Lane”, ela é feita para o interior, para o esconderijo, para o bunker, para a segurança do subterrâneo e do betão não atravessável.

A passagem do urbano para o não-urbano está já patente no ato de saída de Michelle (Mary Elizabeth Winstead), da cidade para a estrada rural, num primeiro nível de fuga, que assim preconiza uma ideia de necessário regresso à figura-região interior, através do afastamento do centro-capital para o outro centro, o centro-terra, o interior-real, a ruralidade produtora e não só consumidora.

Dan Trachtenberg efetiva as imagens dessa passagem, através de travellings que sobrevoam a cidade até ao seu horizonte-limite e daí, para o ondular das estradas – rede conectiva de várias possibilidades de movimento na imensa expansão interior, como se verá mais tarde – interestaduais/rurais que levam assim do valor-consumo para o valor-produção, da coisa que se tem necessidade de comprar pela premência do resolver imediato e sôfrego da situação-limite, para a coisa que se prepara pela vontade e precaução de a ter pronta para o seu uso necessário, na eventualidade e na espera dessas ocorrências disruptivas.

Após ter sido abalroada por uma carrinha, Mary acorda acorrentada a uma cama e numa divisão cimentada. Prisão primeira e nível primeiro de enclausuramento. Abre a porta o seu captor/protetor – uma ambiguidade que se prolonga ao longo de todo o filme – Howard Stambler (John Goodman), que assim lhe conta que a salvou de ter sido mais uma vítima de um massivo ataque ocorrido, o qual passou por um envenenamento da atmosfera por algum mal químico ou libertação de radiação. O medo instala-se em Michelle e, na própria lógica do género, entra-se no filme de terror psicológico: na divisão fechada, não se sabe da verdade. Pode ter havido um ataque ou não. Pode ser ele um raptor e as suas palavras um modo de engodo. Apesar do indícios que ainda obteve na estrada, ela não acredita verdadeiramente. A dúvida é tanto da personagem como o é da forma-filme enquanto suspense de si mesma.

Aí está a maior força deste 10 Cloverfield Lane: a de efetivar e jogar com as convenções do psyco-thriller e a de incubar a incerteza acerca da verdade discursiva, a partir da informação que as personagens disponibilizam umas às outras. Por todo o resto do filme, a falta de informação, a sua busca e validação vão enformar todos os atos das personagens intervenientes. Mais ainda, nessa mesma divisão, todo um outro filme se poderia ter passado – e efetivamente se passa, enquanto uma muito tensa curta-metragem com que ele se inicia realmente – à volta da verdade/inverdade dos jogos discursivos entre Howard e Mary e das tentativas de fuga desta última. A porta entreaberta, a possibilidade de escape à direita, mas de onde se ouve a voz de uma terceira pessoa, Emmett DeWitt (John Gallagher Jr.) e o cair de objetos, constroem em Michelle a ânsia e o medo/perigo de correr para uma liberdade que já se sabe cortada por outras paredes. A divisão fechada é uma entre outras.

Se ela parece um espaço típico de um outro tipo de filme, mais aproximado de um terror que se espera físico, o seu aspeto é enganador, já que ele é, na verdade, o mais despojado de todos naquilo que é vincadamente uma casa, sob a forma de bunker, com certeza, mas montada e decorada com todas as amenidades do conforto e da riqueza produzidas pelo trabalho: ventilação, cozinha, sala de jantar, televisão e filmes, jukebox e jogos de tabuleiro. Howard é um sobrevivencialista e um preparador. Ele estava acautelado, produziu e fez, pensou e armazenou, catalogou e arquivou os modos de alimentação, prossecução existencial (oxigénio e água) e lazer cultural, sempre na assunção da verdade que, acima dele, a civilização viria, um dia, a terminar.

Nesse subterrâneo de sobrevivência, Trachtenberg arquiteta um thriller de suposições e desconfianças mútuas, jogando com os seus ingredientes necessários e suficientes: um espaço fechado e três pessoas a dizerem verdades, meias verdades e completas mentiras umas às outras. No triângulo de ambiguidades discursivas, jogos matreiros de palavras e olhares enganadores, a tensão é sempre crescente e a atmosfera é pesada, apesar dos momentos de calmo lazer – ou da tentativa de os fazer parecer como tal – manifestados nas duas cenas em que a figura-triângulo, na blocagem do posicionamento das personagens, efetiva esse modo tensivo primacial do filme: a do jantar e a dos bidões de ácido. Nessas duas cenas, Trachtenberg utiliza o padrão de blocagem em triângulo para posicionar as três personagens, perfazendo uma tríplice forma de veicular olhares e palavras desconfiadas/dissimuladas, no jantar, e de ameaça/medo/assassínio na cena do bidão de ácido.

Sem nunca se saber da verdadeira intenção de Howard – ele parece ter efetivamente raptado Michelle, tal como fizera anteriormente com uma outra jovem mulher – Michelle consegue escapar e sair para o exterior, vestida com um fato de proteção feito com o seu próprio engenho. Ela consegue respirar, afinal. O ar não lhe parece contaminado. Engano. Howard tinha razão. Se a desconfiança entre humanos havia levado à destruição de um habitat seguro e à morte de Howard e Emmett, era, no entanto, verdadeira a sua informação de que um ataque havia realmente ocorrido e que extraterrestres haviam vaporizado o ar com uma substância mortal.

O filme passa a ser de um outro género: do thriller move-se para o filme de monstros – esse sim do terror físico – e com a mesma eficácia de modos e técnicas de sobrevivência: é a desenvoltura de Michelle que a salva e lhe permite derrotar os seus atacantes alienígenas. Na ação galopante, jogo cinemático que aterroriza mas que liberta a tensão dos três quartos anteriores do filme, Michelle escapa uma outra vez, através das mesmas estradas rurais que, agora desimpedidas, permitem a fuga e o reagrupar das massas dispersas de uma forma mais fluida do que o possibilitavam as artérias metropolitanas e sobrelotadas de “Cloverfield”, através das quais ninguém realmente escapou.

Provida de um carro, Michelle segue pela estrada, em direção de outros sobreviventes, para continuar a luta que o rádio lhe diz estar a prosseguir. Ao fundo, as naves extraterrestres prosseguem o seu ataque/invasão. Noutros universos de “Cloverfield”.

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