Se, há uma década, Dupieux já tinha mostrado como é possível fazer um filme inteiro sobre a fúria de um pneu assassino, no seu mais recente filme o vilão encontra-se numa outra substância aparentemente insignificante: na camurça. Se a premissa é desconcertante, a forma como o realizador a concretiza não deixou de me provocar surpresa, na forma como consegue introduzir uma boa dose de humor dentro daquilo que li como sendo uma interessante metáfora sobre, por um lado, a aparência e o poder que o cinema possui de a manipular e, por outro, os egos que, através dela, buscam uma singularidade quimérica.
Georges (Jean Dujardin) é um homem normal que esbanja alguns milhares de euros da conta conjunta que tem com a esposa, de quem se encontra separado, para comprar um casaco 100% de camurça. Como bónus, ganha uma câmara de filmar digital. Os seus dias são passados entre o quarto de uma pensão e um bar, onde encontra Denise (Adèle Haenel), que será a montadora/produtora do seu filme – ou melhor, do filme do casaco de camurça.
Vejo, neste filme aparentemente banal, uma extrema inteligência que se manifesta na forma insolente e descomprometida com que nos deixa a refletir sobre alguns aspetos fulcrais, tanto da vida social e política, como da criação artística. Devemos perguntar: o que quer afinal este casaco? Qual o significado do seu sonho extravagante? Talvez estejamos perante uma crítica aos cineastas que buscam uma afirmação estilística egoísta e demasiado abstrata; cineastas que acabam por dar origem a uma engrenagem de produção que vai exigindo cada vez mais recursos para satisfazer o seu ego. A necessidade de manter as aparências e a busca por um estatuto é sempre feita tendo como ponto de chegada um além, que seria a marca de singularidade do artista. Ora, este ideal, como todos, possui o perigo de só se tornar alcançável à custa do sacrifício de toda uma parte, considerada pela alucinação de si mesma como única e verdadeira, como não autêntica e eliminável. É este o sonho, tirano e sanguinário, que o casaco de Georges quer ver realizado. São desta qualidade, também, todas as produções que acabam por atingir dimensões que acabam por manipular demasiado e viver menos esse ato de criação. Só assim percebemos como Georges, colocado ao serviço do sonho do seu casaco, acaba por usar todas as pessoas com quem se encontra como meios para conseguir realizar o estranho desejo de autoafirmação do seu casaco.
Na arte, como na própria vida, onde tudo é política, são sempre os casacos estilosos e únicos que vestimos que acabam por nos lançar para um além que mais nada nos tem para oferecer além do seu vazio. O filme de Dupieux afirma mais a sua inteligência crítica do que alguma ideia megalómana de um cinema com estilo próprio e distinção. A sua distinção é mais rica na sua pobreza voluntária, que, pela sua produção modesta, consegue comunicar com o espectador o essencial. Lembro-me do cinema de Ozu e pergunto-me se aquilo que o distinguiria enquanto cineasta não era essa consciência sensível de quem já conseguiu ver que a essência da vida, como a do cinema, não se encontra nesse ideal estilístico individualista, mas no além que é dar a ver a vida, simples e concreta, que acontece diante da câmara? Lembro-me do cinema de Hong Sang-soo ou de Pedro Costa, onde a afirmação da singularidade vem sempre mais de fora, de uma alteridade que os fascina e que, com uma fascinante teimosia infantil, não deixam de a querer perseguir e repetir. Interessa-lhes mais ver a vida nascer fora de si mesmos do que essa estranha egolatria de quem se quer ver nascer a si mesmo em todas as coisas. Talvez seja preciso alguma pobreza para vislumbrar os segredos mais íntimos da vida e talvez estes vivam dentro de um diálogo que se tem por entre mais um copo de cerveja, de saqué ou de soju; ou dentro daquela carta que contém todas as coisas que Ventura um dia deseja oferecer a alguém que o espera em Cabo Verde.
Talvez o cinema não seja mais, nem menos, do que o meio onde nos é permitido projetar e viver as nossas mais queridas obsessões, mantendo vivo o mesmo ímpeto inocente das crianças que jogam à bola. Lembro-me de sair de casa para jogar com os meus amigos e teimar em repetir a mesma roupa, suja e rasgada. O que para outros, já mais adultos, maduros e com sentido de estilo, seria sujidade ou falta de higiene, para mim era a vida a entranhar-se dentro das coisas. A minha obsessão em repetir essas coisas era a única possibilidade de elas ganharem a sua própria duração, apresentarem as suas feridas, a sua história. Era nessa obsessão, tão pobre e tão simples, onde residia o estilo mais puro, a máxima autenticidade. O cinema é como essa bola de jogar na rua, que só pode ganhar vida quando o seu couro se esfiapa. Porque sabemos que aquela bola, acabada de comprar, demasiado cara, brilhante e perfeita, será sempre incapaz de fazer reluzir os olhos de uma criança, até que essa bola, tal como a anterior, se repita ao ponto de a vermos contar a sua própria história. As coisas libertas, fora de nós e nós mais próximos das coisas. Não deve ser assim o cinema? Não deve ser assim a vida? O estilo não se adquire, está sempre lá, sofrendo pequenas deslocações e metamorfoses. Os grandes cineastas sempre souberam que só a proximidade e a interação com a vida podem dar origem a uma verdadeira politique des auteurs.