25 de Abril

19.ª Festa do Cinema Francês: entrevista com Xavier Giannoli

img 0516 1 img 0516 2

O Cinema 7.ª Arte teve a oportunidade de falar com Xavier Giannoli, realizador de “A Aparição”, filme que esteve em antestreia na 19.ª edição da Festa do Cinema Francês no passado dia 5.

O filme teve um enorme impacto em mim, apesar de não ser religioso. É um filme que pega na ideia de veneração, e da veneração cega, da santidade, da crença, e, sobretudo, do sacrifício e que a reconstrói à luz do invisível. Confronta-nos com o silêncio e a incerteza que habita o dia a dia e pergunta-nos em que acreditamos.

Nuno Sousa Oliveira: Em primeiro lugar quero felicitá-lo pelo filme e dizer-lhe que só tive pena de não haver um celibato de pipocas.

Xavier Giannoli: É impossível. Quando vi pessoas a entrar com baldes de pipocas grandes para ver um filme deste género, pensei “Porque não?”. Para mim é um problema porque, na França, já não consigo entrar num cinema com pessoas a comer. É impossível. Ganham mais dinheiro com os doces do que com os filmes. O problema é esse.

NSO: O casting de “A Aparição” é excecional, a começar, evidentemente, por Vincent Lindon. No entanto, para mim, a verdadeira estrela é Galatéa Bellugi. Ela tem uma expressividade que poucas atrizes da sua idade têm. Como é que foi dirigir uma atriz tão jovem, embora com muito talento, para um papel exigente como este?

XG: Ela foi sublime durante o casting. Mas há aqui uma coisa muito importante. Ela tem o dom. Tem simplesmente um grande talento natural. Ela foi sempre muito precisa, muito trabalhadora, passou muito tempo num mosteiro antes da rodagem… Era maravilhoso vê-la trabalhar. Eu e o Eric Gautier, o diretor de fotografia do filme, ficávamos impressionados com ela todos os dias. Eu pedi-lhe para fazer uma coisa um pouco estranha durante um plano longo com ela: queria que ela não pestanejasse. Quando se vê o filme pela primeira vez, não nos apercebemos disto, mas sentimos que há ali qualquer coisa estranha. E é por causa disso, de ela nunca pestanejar.

NSO: É inevitável não pensar em Bresson ou em Dreyer durante “A Aparição”, mas sente-se que o filme segue um outro caminho. É um filme, de certa forma, muito cru, pois é numa realidade dura e fria que somos confrontados com o que acreditamos, sejamos religiosos ou não.

XG: Por um lado, as obras deles impressionam-me, mas, por outro, não. De qualquer forma, não há como negar que são belíssimas. As críticas ao filme foram muito boas em França, mas lembro-me de que houve um crítico que disse que, para um tema como este, esperava uma coisa mais ardente, uma coisa que revelasse um tipo qualquer de fogo interior, como se fosse Dreyer. Para mim é ridículo escrever uma coisa destas. É tão fácil para um crítico dizer o que a beleza é. Para eles é Gustave Flaubert, então temos todos de ser um Flaubert. Eles que se lixem.

NSO: E, pelo contrário, a estética de “A Aparição” rejeita esse tipo de lirismo.

XG: Exatamente. Quando pensámos onde queríamos filmar, teria sido fácil escolher uma igreja ou um mosteiro escuro com livros antigos e afins. Mas eu queria outra coisa. Queria aquelas mesas e cadeiras banais. Queria saber se a espiritualidade teria lugar num mundo banal e violento. Queria que fosse simples. Aliás, filmámos numa fábrica. Estávamos a falar de espiritualidade num lugar destruído pela economia. Não precisamos de ser um Bresson para falar de Deus.

NSO: Escolheu usar música de Arvo Pärt em “A Aparição”, o que faz todo o sentido, já que a sua obra tem uma forte ligação à religião. No entanto, hoje em dia, ouvimos Pärt um pouco por todo o lado, inclusive no cinema comercial. O resultado é uma rotura muitas vezes temática e ideológica entre a obra de Pärt e esses filmes. Qual a sua relação com a obra do compositor e porque escolheu a sua música?

XG: Eu tenho trabalhado com grandes compositores como Alexandre Desplat, por exemplo, e  costumo escrever os meus argumentos sozinho. Por essa razão, às vezes gosto de ouvir música enquanto penso no filme. Vou contar-lhe uma coisa que nunca tinha contado a ninguém. Quando trabalhava como assistente de realização, conheci uma pessoa que ia tornar-se muito importante na minha vida: François Musy, o meu engenheiro de som. Ele trabalhou com Jean-Luc Godard em 28 filmes, foi o engenheiro de som dele e vive na mesma cidade que Godard há muito tempo, em Rolle, na Suiça. Todas as minhas curtas e longas-metragens foram feitas com François Musy. Ele está presente em todo o processo de produção do filme, desde a rodagem até à mistura final do som. Godard esteve comigo durante a mistura da minha primeira curta e foi aí que ouvi Arvo Pärt pela primeira vez, tinha eu 21 anos. Nessa altura, Godard estava a trabalhar no documentário “Histoire(s) du Cinéma”. A editora discográfica ECM costumava dar centenas de CD a Godard. Lembro-me de ver montanhas de CD pelo estúdio. Perguntei ao meu engenheiro de som que música era aquela. Lembro-me de que ele foi até à sala onde estava Godard e que passado um pouco voltou com o “Tabula Rasa”, de Pärt. Ao jantar, estava eu com o meu Walkman a ouvir a sua música. Há qualquer coisa de muito simples e profundo na obra dele. Podemos ouvi-lo no “Haverá Sangue”, de Paul Thomas Anderson. É um filme de Hollywood que, de certa forma, não o é. É como um filme independente, é estranho, mas não é de estranhar que filmes assim recorram a Pärt. Há uma coisa, no entanto, que também é muito importante. No final do filme, há uma música lindíssima de Georges Delerue, que compôs para “O Desprezo”, de Godard, e também para Truffaut, entre outros. Delerue foi o deus da música da Nouvelle Vague, mas também compôs para Oliver Stone, por exemplo. Foi interessante ter “Stellaire”, uma obra esquecida, composta para o documentário “Tours do Monde, tours do ciel”, durante a cena do deserto. Isto é, ouvir uma música sobre os mistérios do universo, na Terra.

NSO: Um dos grandes temas do filme é o sacrifício. Porém, perante um mundo globalizado que, paradoxalmente, está cada vez mais fechado em si mesmo, sente que este espírito de sacrifício a que o filme apela ainda está presente nos dias que correm? Será possível sacrificar o nosso conforto de bom grado?

XG: Hoje em dia vivemos o oposto desse espírito. A ideia de sacrificar o nosso conforto é… Mas isto não é bem verdade. Há muitas pessoas hoje em dia, particularmente a geração mais jovem, que querem mudar isso. Há muitas pessoas que querem ajudar o próximo. Eu sinto-me otimista. Há quem perceba que a nossa relação com o planeta, com os nossos princípios e com o dinheiro tem de mudar. Digo-lhe uma coisa, mesmo que haja cada vez menos pessoas a ir à igreja, pelo menos na França e em muitos outros países, os valores cristãos ainda perduram. Se sentimos a simples necessidade de ajudar alguém na rua, é por causa deles. Por isso, mesmo que as pessoas já não rezem, ou que pensem que deixaram de acreditar, ainda sentimos esses valores por todo o lado. Se a nossa sociedade ainda se aguenta de pé, é por causa deles. É por esta razão que senti que era necessário terminar o filme com dois tipos de sacrifício: o de Anna, que se sacrifica e morre por Deus, e o de Mériem, que dedica a sua vida a ajudar refugiados. Mas é este o sentimento desta nova geração de pessoas: procurar formas de ajudar o próximo e fazer qualquer coisa por este mundo. Os migrantes que estamos a receber colocam-nos uma questão fundamental: em que é que nós acreditamos? Claro que não podemos acolher todos os migrantes, claro que é um problema, é perigoso, complicado, mas o que vamos fazer em relação a isso? “A Aparição” é sobre isto: em que é que acreditamos?

NSO: Falando agora em Vincent Lindon. Às vezes ele faz-me lembrar uma espécie de Klaus Kinski, que tinha aquela amável relação com Herzog, mas tenho a certeza de que não é assim…

XG: Não! Nada disso! Nós adoramo-nos! Não nos queremos matar um ao outro. Mas, sim, ele é maluco.

NSO: É um pouco “kinskiano”, de certa forma.

XG: Completamente. Ele acredita nos filmes que faz, quer viver tudo ao máximo, está sempre a fazer perguntas e quer saber tudo. Tem de se sentir completamente envolvido em tudo, o que é ótimo para um realizador. É uma coisa fantástica. Sabe como é que eu lhe chamo?

NSO: Não…

XG: Barry Lyndon.

NSO: Uma pessoa muito próxima disse-me uma coisa há uns anos que é, até agora, uma espécie de amuleto na minha vida: “É importante acreditar em qualquer coisa.” Apesar de ser ateu, essa curta frase ajudou-me muito. “A Aparição” é precisamente sobre encontrar uma coisa semelhante, algo em que acreditar.

XG: Sim, em todos os meus filmes eu confronto-me com essa questão. E, de certa forma, eu próprio estou a tentar acreditar no cinema. A história do meu primeiro filme é autobiográfica e isto porque o meu primeiro amor morreu de cancro quando ela tinha 20 anos. E isso causou-me uma longa depressão. Destruiu-me durante 10 anos. Agora, sempre que dou o argumento de um filme ao diretor de fotografia, levo com a pergunta “Então, quem é a mulher que vai morrer no hospital desta vez?”. Tenho de ter sempre uma cena assim. E durante muito tempo, precisava simplesmente de ir à igreja. Estava furioso. Achava que nada fazia sentido. Mas ainda agora preciso desse consolo. Ao lado da casa do amigo em que fiquei cá alojado, há uma igreja, e ainda sinto a necessidade de entrar e de me sentar. Sinto sempre qualquer coisa de profundo e importante. Contudo, já não vou à igreja todos os domingos. Falando agora de quem rejeita o cristianismo. Há muitos livros que referem que Cristo é uma invenção, há antropólogos que dizem existir inúmeras contradições históricas nas Escrituras. Mas o que eu vi na Jordânia, onde filmamos a última parte do filme, era belíssimo. Muitas religiões primitivas sacrificavam bebés e, de repente, surgia uma nova religião cujo deus era um bebé.  E, em relação à morte, todos temos medo dela, mas depois surge uma religião que diz que a morte é apenas o começo. As pessoas sofriam também, devido à doença, por exemplo, e depois essa religião diz “Não se preocupem. Estão a sofrer, mas isso é bom. Com o sofrimento, estão mais perto de Deus”, por isso, mesmo que não acreditemos no cristianismo, mesmo que achemos que é uma coisa inventada, podemos encontrar nele muitas respostas sobre a nossa relação com a morte. Lembro-me de ter falado com um bispo e de lhe perguntar “É mais forte do que eu? Tem a certeza de que não sentirá medo quando morrer, porque acredita em Deus?”. E ele disse-me “Espero não estar errado. É isso que me vou perguntar quando morrer”. É maravilhoso ouvir um bispo dizer isto. E apesar de todas as dúvidas em torno do cristianismo, há qualquer coisa de belo nele e na forma como nos pode ajudar a encontrar um sentido para a nossa dor e para a nossa vida.

NSO: Cada vez mais se está a perder o hábito de ir ao cinema e de o ver como um espaço de comunhão, de convívio. Com a digitalização da indústria cinematográfica e a evolução dos serviços de streaming, como a Netflix e a Amazon Prime, como vê o futuro do cinema e da sala de cinema?

XG: Só sei que tenho medo. No entanto, acho que se vai continuar a exibir filmes nas salas de cinema. Quanto a filmes como este, hão de acabar, infelizmente, nos serviços de streaming. Talvez o cinema independente consiga arranjar distribuição para algumas salas de cinema, mas não se vai comparar ao que temos agora. Tenho receio em relação ao futuro da distribuição de cinema. Veja a beleza de um lugar como este (Cinema São Jorge). Ainda ontem disse que exibir um filme num centro comercial era como o fim do mundo. Claro que a sala tinha excelentes condições, mas aquele sítio… Eu espero que um espaço como o São Jorge não morra, porque isto é que é o cinema. É nisto que acreditamos.

No final da conversa, Giannoli revelou-me um projeto fascinante em que está a trabalhar no campo de refugiados de Zaatari, na Jordânia, lugar onde decorre a última parte de “A Aparição”: uma sala de cinema chamada, apropriadamente, Cinema Lumière. Mais abaixo está um curto vídeo sobre ela, narrado por Giannoli.

Xavier Giannoli venceu a Palma de Ouro para melhor curta-metragem no Festival de Cannes em 1998 pelo filme “L’Interview” e ainda o César, da mesma categoria, em 1999, pelo mesmo filme. O seu filme “Marguerite” foi nomeado para onze César e venceu quatro, entre os quais o César para Melhor Atriz (Catherine Frot), Melhor Som, Melhor Design de Produção e Melhor Guarda-Roupa.

O filme tem estreia a 11 de outubro. A distribuição ficou a cargo da Alambique Filmes.

 

 

 

 

 

 

 

Skip to content