Há actores que se confundem com a personagem. Há outros que parecem inventá-la. Diane Keaton pertence a essa segunda espécie — a dos que tornam impossível separar o cinema da vida. Morreu aos setenta e nove anos, na Califórnia, e é inevitável sentir que se encerra um certo capítulo da modernidade: aquele em que o riso vinha ladeado de melancolia, e a liberdade se vestia de chapéu e colete largo.
Nascida Diane Hall, em Los Angeles, a 5 de Janeiro de 1946, cresceu entre o brilho das vitrines e a monotonia do sol californiano, mas cedo intuiu que o seu lugar estava noutra latitude. Nova Iorque ofereceu-lhe não apenas o teatro, mas o olhar: estudou representação no Neighborhood Playhouse e aprendeu a transformar insegurança em força expressiva.
O palco de “Hair” foi a sua primeira morada; Woody Allen, o companheiro que a projectaria para o mundo. Em “Play It Again, Sam”, percebe-se já a química improvável que uniria dois tímidos geniais. Mas é em “Annie Hall” que o acaso ganha forma. Um raro ponto de viragem, quando o descompasso virou harmonia e o tímido, sem saber, inventou o charme.
Keaton não se limitava a representar personagens; impregnava-as com uma naturalidade que desmentia qualquer esforço, como quem habita a própria pele da existência.
Exemplos disso não faltam. Em “Annie Hall”, a icónica Annie transmuta a timidez em magnetismo, e a aparente desordem de cada aceno torna-se estilo, inscrição silenciosa de uma emancipação que remodela a feminilidade cinematográfica com irreverência e delicadeza. Em “O Padrinho”, Kay Adams contempla o império mafioso com a serenidade de um olhar que tudo percebe e quase nada revela.
Em “Baby Boom”, maternidade e carreira colidem num balé de tensões, mas o humor, sempre ele, intervém com a leveza de um sopro que corrige o desequilíbrio. Em “As Filhas de Marvin”, a fragilidade transmuta-se em força e o tempo parece deter-se, atento, como se ponderasse cada silêncio. Trabalhou com Lumet, Beatty, Brooks e Allen, e em todos deixou vestígio de uma mulher cuja voz era baixa mas cuja presença proclamava, com irrecusável autoridade, tudo o que havia para dizer.
Fora das câmaras, manteve a mesma independência que marcou o seu trajecto artístico. Nunca casou, adoptou dois filhos e dedicou-se à restauração de casas antigas, como quem extrai memórias das paredes e lhes devolve nova vida.
Fotógrafa, publicou “Reservations” e “Saved”; escritora, deu-nos “Then Again” e “Let’s Just Say It Wasn’t Pretty”, memórias em que o humor se entrelaça com a vulnerabilidade e a inteligência do olhar. Realizadora, filmou com o cuidado de quem percebe o cinema como extensão da atenção ao mundo, como prolongamento de uma curiosidade infinita.
O estilo iconoclasta — chapéus tortos, coletes largos, gravatas soltas — tornou-se selo de identidade, vestígio delicado de uma presença que se distingue do comum. Mais do que mera questão de moda, foi emblema de insurgência aliciante, uma audácia que se projeta sem estridência, desafio contido ao olhar masculino, sem jamais o confrontar directamente.
Keaton deixa um Óscar, um BAFTA, dois Globos de Ouro e uma herança imaterial ainda mais perene: a lição de que a leveza pode ser densa e a autenticidade, quando completa, constitui fortaleza discreta. Talvez por isso continue a ser impossível encarar o ecrã sem pressentir aquele sorriso enviesado, como se nos recordasse, com ironia fina, que permanecer inteiro é sempre demonstração de intrepidez.
Em tributo à sua obra, seleccionámos sete filmes que foram marcos na sua carreira.
“O Padrinho” (1972), de Francis Ford Coppola
Em “O Padrinho”, Keaton encarna Kay Adams, figura fulcral e espelho moral que irradia a voz da normalidade americana no seio sombrio da família Corleone. Inicialmente, Kay surge como uma forasteira idealista, alheia ao intrincado e pérfido universo da máfia, que se une a Michael Corleone movida pela promessa de legalidade e redenção dos negócios familiares. À medida que Michael se imerge cada vez mais na obscuridade do poder e se transforma no inexorável Don, Kay assiste, impotente, à lenta corrosão do marido e à ruína progressiva da própria existência.
A sua trajectória delineia-se numa sucessão de desilusões crescentes, culminando em confrontos carregados de tensão dramática nos episódios subsequentes. Kay encarna a quimera da tentativa de Michael de preservar uma vida honesta e emerge como catalisadora que desnuda o preço humano do domínio e da ambição, tornando-se a esposa que, silenciosa e inexoravelmente, paga o tributo final à obsessão criminosa do marido.
“Annie Hall” (1977), de Woody Allen
O personagem de Annie Hall, no filme homónimo de 1977, representa um dos ápices da trajectória artística de Keaton, valendo-lhe o Oscar de Melhor Atriz e consagrando-a como arquétipo de uma feminilidade moderna e desassombrada. Annie emerge como aspirante a cantora e fotógrafa, dotada de uma singularidade que combina desajeitamento e charme, uma delicada estranheza que seduz e desconcerta, definindo-a como presença inconfundível na narrativa cinematográfica.
No núcleo da trama, Annie surge como contraponto e complemento do neurótico comediante Alvy Singer (Woody Allen), cuja visão do mundo, cínica e melancólica, se vê confrontada pelo espírito livre, audaz e irrequieto da protagonista. O seu estilo andrógino, que se tornaria ícone de moda e comportamento, não é mero adereço, mas extensão da sua identidade, expressão visível de uma liberdade interior que desafia convenções e expectativas.
“Reds” (1981), de Warren Beatty
Em “Reds” (1981), Keaton encarna Louise Bryant, figura histórica de inegável relevância, cuja vida e obra se entrelaçam com os grandes tumultos políticos do início do século XX. Bryant, jornalista, escritora, feminista e activista, é aqui retratada como mulher de espírito indomável, capaz de abandonar o matrimónio convencional e as seguranças da vida burguesa para se unir a John Reed (Warren Beatty), jornalista e activista socialista, em busca de uma existência imbuída de propósito, paixão e compromisso político.
O arco da personagem desenvolve-se através do relacionamento intenso e conturbado com Reed, simultaneamente com a sua ascensão como voz independente na esfera jornalística, cobrindo acontecimentos decisivos como a Revolução Russa. Enquanto Reed se entrega de forma quase obsessiva à causa comunista, Bryant luta para preservar a própria identidade e a ligação com o parceiro, em meio ao turbilhão de uma História que não admite hesitações.
A interpretação de Diane Keaton, que lhe valeu uma nomeação ao Óscar de Melhor Atriz.
“O Pai da Noiva” (1991), de Charles Shyer
Keaton dá vida a Nina Banks, esposa de George (Steve Martin) e mãe da noiva, cuja presença se afirma como eixo de serenidade e equilíbrio no tumultuoso núcleo familiar dos Banks. Enquanto George se vê envolto em crises de pânico e neuroses provocadas pelos preparativos do casamento e pela iminente partida da filha, Nina assume com graça e firmeza o papel de mediadora afectuosa, mantendo a harmonia e a alegria do evento diante das inseguranças do marido.
A sua intervenção não se limita à mediação; Nina sustenta a filha com ternura, ampara o marido com paciência e assegura que a celebração e a felicidade familiar não sucumbam às turbulências emocionais que a ocasião inevitavelmente desperta.
“Duas Irmãs” (1996), de Jerry Zaks
Keaton encarna Bessie, filha que, ao contrário da irmã Lee (Meryl Streep), permaneceu no lar familiar para assumir, com entrega silenciosa e inquebrantável, os cuidados do pai, Marvin, acamado após um derrame, e da tia senil. Ao abdicar dos seus próprios sonhos e da vida que poderia ter escolhido, Bessie transforma-se no pilar invisível da família, sustentando-a com uma paciência quase heroica e uma força contida que se revela nos gestos quotidianos, subtis e carregados de afecto e responsabilidade.
A narrativa encontra o seu ápice quando Bessie é confrontada com o diagnóstico de leucemia, exigindo a intervenção de Lee e dos seus filhos na busca desesperada por um dador de medula óssea.
A interpretação lhe valeu uma merecida nomeação ao Óscar de Melhor Atriz.
“Alguém Tem que Ceder” (2003), de Nancy Meyers
Keaton interpreta Erica Barry, dramaturga de sucesso, divorciada, inteligente e sofisticada, que habita uma luxuosa casa de praia nos Hamptons. Mulher realizada, combina uma carreira consolidada com uma vida pessoal autónoma, vivendo com confiança e independência.
A chegada de Harry Sanborn (Jack Nicholson), um playboy mais velho que namora a filha de Erica e que sofre um ataque cardíaco, altera a sua rotina. Forçado a recuperar em sua casa, Harry confronta a racionalidade ponderada de Erica com o seu charme provocador, desencadeando uma relação inesperada, gradual e madura.
Este papel é considerado um dos mais marcantes de Diane Keaton, rendendo-lhe o Globo de Ouro de Melhor Atriz em Comédia ou Musical e uma indicação ao Óscar de Melhor Atriz.
“Dinheiro Vivo” (2008), de Callie Khouri
Ela é Bridget Cardigan é uma socialite habituada a uma vida de luxo e conforto, cuja realidade se abala quando o marido perde o emprego e o casal se vê afogado em dívidas, obrigando-a a procurar trabalho pela primeira vez em anos.
Acaba por conseguir um emprego como faxineira no Federal Reserve de Kansas City, onde se depara com enormes quantidades de dinheiro velho destinadas a ser destruídas. Movida pelo desespero e pelo desejo de recuperar o antigo estatuto social, Bridget elabora um plano audacioso de roubo, contando com a cumplicidade de duas colegas de trabalho (Queen Latifah e Katie Holmes).
A personagem revela-se uma mulher que transita da vida privilegiada de dona de casa para a mente por trás de um crime sofisticado, demonstrando até que ponto está disposta a desafiar regras e convenções para preservar o estilo de vida que sempre conheceu.

