7 filmes que eternizaram o estilo de David Lynch

Em quase 50 anos de carreira, Lynch revolucionou o cinema ao combinar, de maneira única, elementos de horror, noir, policial e surrealismo
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Foto: Afi Fest Publicity

Nesta quinta-feira (16), fomos surpreendidos pela morte do lendário David Lynch.

Realizador, produtor, músico, guionista, artista e ocasional ator, Lynch construiu uma carreira com mais de 80 filmes, deixando uma marca perpétua no cinema contemporâneo, tanto nos Estados Unidos como no mundo.

A sua visão artística, completamente inovadora, mesclava elementos de horror, noir, policial e surrealismo europeu, criando uma fusão única que dava vida a histórias que, de certa forma, seguiam a lógica impenetrável de seu antecessor, o espanhol Luis Buñuel.

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Embora fosse reticente em atribuir um significado definitivo ao impacto do seu trabalho, essa visão, juntamente com o seu estilo inconfundível — que combinava extravagância, eloquência e poesia — rapidamente chamou a atenção de Hollywood e do establishment cinematográfico internacional.

Este reconhecimento traduziu-se em quatro nomeações para os Óscares competitivos e um Óscar honorário em 2020, como forma de celebrar a sua carreira e o seu legado no cinema.

Além disso, entre outros prémios em nomeações em Cannes foi premiado com a Palma de Ouro em 1990 por “Um Coração Selvagem”, o Prémio de Melhor Filme Não Europeu nos European Film Awards em 1999 por “Uma História Simples”, novamente em Cannes levou o Prémio de Melhor Realizador em 2001 por “Mulholland Drive” e o Leão de Ouro pelo Conjunto da Obra, em 2006.

Para celebrar a sua trajectória, seleccionámos sete filmes que marcaram para sempre o cinema e imortalizaram o seu estilo único.

“O Homem Elefante” (1980)

Em “O Homem Elefante”, Lynch apresenta a tocante história de John Merrick (John Hurt), um homem nascido com deformidades físicas severas, que, à partida, parecia destinado a uma vida triste e degradante como atração num espectáculo de aberrações.

A cruel realidade da sua existência relegava-o à marginalidade, onde a sua aparência monstruosa era alvo de escárnio e repulsa. No entanto, a sua vida tomou um rumo inesperado quando o Dr. Frederick “Freddie” Treves (Anthony Hopkins), um cirurgião londrino sensibilizado pela sua situação, o resgatou da humilhação pública e o apresentou à sociedade.

Apesar de carregar as cicatrizes dolorosas das suas experiências, tanto físicas como emocionais, Merrick revelou-se um homem de extrema bondade, inteligência aguçada e uma sensibilidade que contrastava com a sua aparência grotesca.

Ao longo da narrativa, Lynch constrói o retrato de um ser humano que, mesmo sofrendo com os preconceitos e dificuldades impostas pela sua aparência, se torna um convidado frequente nos salões vitorianos, onde as suas conversas fascinavam intelectuais e artistas da época.

Contudo, para poder circular entre essas pessoas e ser aceite, Merrick tinha de ocultar completamente as suas feições deformadas, cobrindo o rosto com um pano e mantendo-se afastado do olhar directo da sociedade, que ainda não conseguia vê-lo como algo além de uma aberração.

A dor de ter de esconder a sua identidade física era um fardo constante, mas, ao mesmo tempo, ele encontrava nos encontros sociais e nas relações genuínas a oportunidade de mostrar a sua verdadeira natureza, desafiando as noções superficiais de beleza e humanidade.

O drama recebeu oito indicações na 53.ª edição dos Óscares, incluindo Melhor Filme, Melhor Realizador para Lynch, Melhor Argumento Adaptado para Christopher De Vore, Eric Bergren e Lynch, e Melhor Ator para John Hurt, mas não levou nenhum prémio.

“No Céu Tudo é Perfeito” (1977)

Em “No Céu Tudo é Perfeito” (1977), temos Henry e Mary (Jack Nance e Charlotte Stewart), um casal cujo bebé nasce prematuro, mas com características tão grotescas e desumanas que desafiam qualquer concepção de normalidade.

A criança, marcada por deformidades físicas severas, torna-se um fardo psicológico e emocional para Mary, que, incapaz de lidar com o sofrimento e o desconforto causados pela aparência do filho, a abandona. Sozinho e devastado, Henry vê-se forçado a enfrentar uma dura realidade, tendo de equilibrar a dor da perda com a responsabilidade de cuidar de um bebé que parece exigir um esforço sobrenatural para ser amado.

Lynch, na sua abordagem única, explora as profundezas da condição humana, tratando do medo, do desgosto e da necessidade de aceitação. A relação entre Henry e o bebé, em meio a tanta adversidade, revela-se uma luta constante, marcada pela tentativa de encontrar humanidade onde, à primeira vista, não parece haver.

A obra transcende uma simples história de um pai solteiro, mergulhando nas complexidades psicológicas de um homem que, diante da rejeição e da alienação, busca cumprir o seu papel de cuidador, enfrentando a culpa, a solidão e a pressão de um mundo que não compreende a situação.

Lynch, como é seu costume, utiliza a estética perturbadora e a atmosfera surreal para reflectir sobre a estranheza da vida, onde até as relações mais íntimas e humanas são moldadas por angústias e traumas profundos.

A trama não é apenas sobre a figura de um pai a tentar cuidar do seu filho, mas também sobre os limites da empatia e da capacidade humana de enfrentar o insuportável.

Em “No Céu Tudo é Perfeito”, Lynch questiona os padrões de normalidade e beleza, propondo uma reflexão sobre como o ser humano lida com aquilo que considera monstruoso, explorando, assim, as fronteiras entre o amor, a repulsa e a aceitação.

“Mulholland Drive” (2001)

“Mulholland Drive” (2001) é considerado um dos maiores clássicos do cinema contemporâneo, uma obra-prima de Lynch, onde o real e o surreal se entrelaçam de forma sedutora e perturbadora.

O filme começa com a história de uma jovem atriz, Betty Elms (Naomi Watts), que chega a Hollywood com sonhos de sucesso, apenas para se ver envolvida numa trama misteriosa e desconcertante. Ao instalar-se num apartamento, encontra uma mulher desconhecida (Laura Harring) que, após sofrer um grave acidente de carro na famosa estrada de Mulholland Drive, perde a memória e não consegue recordar a sua identidade ou como chegou àquele estado.

A jovem Betty, inicialmente entusiasmada com as perspectivas de uma carreira promissora em Hollywood, vê-se rapidamente envolvida na busca para descobrir quem é a mulher amnésica, com quem desenvolve uma ligação inesperada.

À medida que as duas tentam desvendar o mistério, o filme mergulha num abismo de surrealismo, criando um ambiente em que a lógica se dissolve e as fronteiras entre sonho e realidade se tornam indistintas. Lynch, como é característico do seu trabalho, faz uso de elementos simbólicos e imagens oníricas para desorientar o espectador, provocando uma sensação de confusão e inquietação.

O enredo de “Mulholland Drive” é denso, fragmentado e carregado de camadas interpretativas. Cada cena parece carregar múltiplos significados, e as transições entre a realidade e a fantasia são feitas com subtileza, desafiando o público a reconstruir o quebra-cabeças que Lynch propõe.

À medida que os mistérios se intensificam, o filme transforma-se numa reflexão complexa sobre a obsessão pela fama, as ilusões da indústria cinematográfica e os desejos reprimidos. A caminho de Betty/Betty-Linda em Hollywood torna-se uma metáfora para os próprios horrores da fama, a perda da identidade e a destruição pessoal, temas recorrentes na obra de Lynch. O facto de a trama ser não linear e envolver elementos tão abstratos dá a “Mulholland Drive” um carácter de pesadelo psicológico, onde as interpretações são múltiplas e abertas a diferentes leituras.

“Mulholland Drive” destaca-se também pela forma como lida com a identidade, especialmente no que diz respeito à mulher, e as suas complexas interacções com os outros personagens. A mulher amnésica, que mais tarde se revela sob diferentes formas e personagens, reflecte o conceito de fragmentação da identidade, uma ideia central tanto na narrativa como na própria estrutura do filme.

A ambiguidade entre o que é real e o que é apenas uma projecção do subconsciente gera uma sensação de desorientação, colocando em questão a própria natureza da memória e do desejo.

No final, o filme de Lynch não oferece respostas claras, mas desafia o espectador a reflectir sobre a natureza do cinema, da identidade e do sonho americano.

A trama rendeu a Lynch uma nomeação ao Óscar de Melhor Realização na 74.ª edição do prémio.

“Veludo Azul” (1986)

Em “Veludo Azul” (1986), Lynch conduz o espectador numa rota de mistério e descoberta através dos olhos de Jeffrey Beaumont (Kyle MacLachlan), um jovem que regressa à sua cidade natal após um longo período de ausência.

A aparente tranquilidade da cidade é quebrada quando Jeffrey encontra, de forma inesperada, uma orelha humana decepada no jardim de uma casa. Esse estranho e macabro achado desencadeia uma série de eventos que o levam a questionar a superficialidade da sua vida até então tranquila e idílica.

Incomodado com a superficialidade e ineficácia da investigação policial, que não parece aprofundar-se nos mistérios que rodeiam o caso, Jeffrey decide ir mais fundo por conta própria.

Nessa busca obsessiva por respostas, ele alia-se a Sandy (Laura Dern), a filha do detective responsável pela investigação (George Dickerson), e os dois começam a descobrir segredos perturbadores sobre a cidade e os seus habitantes. À medida que se aprofundam no enigma, ambos se deparam com uma rede de corrupção, violência e perversão, onde o normal e o macabro se entrelaçam de formas imprevisíveis.

Lynch utiliza a atmosfera surreal e inquietante para explorar temas como o duplo, o obscuro e o proibido, levando o espectador a navegar por um mundo onde as aparências são constantemente questionadas. A cidade, que à primeira vista parece ser um retrato da normalidade suburbana, revela-se um lugar marcado por uma violência soterrada, em que os aspectos mais obscuros da psique humana emergem de forma violenta e inesperada.

A relação entre Jeffrey e Sandy evolui à medida que ambos são atraídos para um jogo perigoso de descobertas e sentimentos conflitantes, à medida que desvendam os mistérios de um mundo que, embora à primeira vista familiar, está longe de ser seguro.

“Veludo Azul” não é apenas um thriller psicológico, mas também uma análise sobre os limites entre o bem e o mal, o certo e o errado, e como o medo do desconhecido pode transformar a própria percepção da realidade.

A descoberta da orelha, um símbolo de fragmentação e perda de identidade, é apenas o início de uma trama complexa e envolvente, onde Lynch nos leva a questionar até que ponto a superficialidade da vida suburbana pode esconder horrores profundamente enraizados.

Com o seu olhar peculiar, Lynch utiliza o mistério e o terror psicológico para criar um filme que é tanto uma investigação criminal como uma introspectiva exploração das profundezas da mente humana.

O filme garantiu a Lynch a sua segunda nomeação ao Óscar de Melhor Realizador na 59.ª edição do prémio.

“Inland Empire” (2006)

Em “Inland Empire” (2006), Lynch apresenta-nos Nikki (Laura Dern), uma atriz americana casada que se envolve num projecto cinematográfico atípico. Ela é convidada para protagonizar uma produção polaca, cujo enredo gira em torno de uma história de vingança, mas que havia sido abruptamente interrompida após a morte misteriosa dos atores principais.

Ao mergulhar nesse universo, Nikki começa a perder-se nas camadas complexas da sua própria identidade e da ficção, enquanto tenta compreender o que realmente está a acontecer.

À medida que as filmagens avançam, Nikki desenvolve uma relação com o ator principal da produção, levando-a a questionar os seus desejos, limites e a ténue fronteira entre a vida real e a representação. Essa ligação, aparentemente inofensiva, desencadeia uma espiral de confusão, na qual os acontecimentos ficcionais se entrelaçam cada vez mais com a sua realidade. A narrativa torna-se progressivamente mais desconcertante e fragmentada, misturando diferentes histórias e cenários de forma surreal e desconstruída.

A personagem de Nikki vê-se enredada numa espiral de percepções distorcidas, onde o real e o fictício se tornam indistinguíveis. A sua vida parece transformar-se numa performance, um jogo psicológico em que as personagens da produção começam a invadir a sua realidade de forma crescente e intrusiva.

A linha que separa quem Nikki é de quem ela interpreta dissolve-se gradualmente, empurrando-a a questionar a sua própria identidade e a capacidade de distinguir a sua vida do papel que desempenha no filme.

Lynch utiliza a trama não só como uma reflexão sobre o cinema, mas também como um estudo profundo da psique humana, das suas obsessões e medos. O filme, com o seu enredo labiríntico e esteticamente fragmentado, guia-nos numa viagem através do surrealismo, da psicose e da desintegração da identidade, desafiando o espectador a questionar constantemente o que é real e o que não é.

Em última análise, trata-se de uma obra que transcende os limites da narrativa convencional, mergulhando na complexidade da mente humana e nos mistérios insondáveis da identidade, da fama e da arte. Combinando o íntimo e o grotesco, o psicológico e o fantástico, a produção desafia as fronteiras do cinema e da percepção humana, oferecendo ao espectador uma experiência sensorial profundamente única e inquietante.

“Um Coração Selvagem” (1990)

No neo-noir “Um Coração Selvagem” (1990), Lynch adapta a novela de Barry Gifford, apresentando uma história intensa de amor, violência e destino. A trama acompanha o casal apaixonado Sailor Ripley e Lula Fortune (Nicolas Cage e Laura Dern), cujas vidas são marcadas por um turbilhão de acontecimentos imprevisíveis e perigosos.

Após cumprir uma pena de prisão, Sailor reencontra a sua amada Lula, e juntos partem numa viagem rumo à Califórnia, na tentativa de reconstruírem as suas vidas longe dos problemas que os assombram.

Contudo, o amor deles não é aceito por todos, especialmente pela mãe de Lula, Marietta (Diane Ladd), que desaprova profundamente o relacionamento. Impulsionada por um desejo obsessivo de controlar a filha, a mãe de Lula vai ao extremo e contrata um assassino profissional para matar Sailor. O assassinato encomendado desencadeia uma série de eventos densos, em que a violência, a traição e o destino implacável surgem como forças que testam o amor entre os dois jovens e a sua capacidade de resistir aos desafios que enfrentam.

Como os demais filmes mencionados, o enredo de “Um Coração Selvagem” está imerso numa atmosfera de surrealismo e simbolismo. A película combina elementos do clássico cinema noir com o universo excêntrico e singular do realizador, criando uma experiência visual e emocionalmente carregada.

A história de Sailor e Lula é tanto uma rota física quanto emocional, marcada pela busca por liberdade, pelo desejo de escapar de um passado turbulento e, ao mesmo tempo, pela inevitabilidade das forças que os pressionam.

À medida que a trama se desenrola, Lynch coloca em confronto o amor puro e impulsivo do casal com as forças cruéis e corruptas que os cercam, desafiando o espectador a questionar o verdadeiro custo da liberdade e a natureza do destino.

A paisagem americana, com as suas estradas solitárias e cenários desolados, serve como um reflexo da busca incessante do casal por um lugar onde possam ser apenas eles mesmos, longe da violência e das intrigas que os ameaçam.

A interpretação de Diane Ladd como a sogra megera e mãe controladora lhe garantiu uma nomeação ao Oscar de Melhor Atriz Secundária na 63.ª edição do prémio.

“Uma História Simples” (1999)

Baseado na história real de Alvin Straight, que em 1994 percorreu Iowa e Wisconsin a bordo de um cortador de relva, “Uma História Simples” (1999) revela um lado mais realista, sensível e introspectivo da realização de Lynch.

Neste road movie dramático, o realizador apresenta Alvin (Richard Farnsworth) como um idoso veterano da Segunda Guerra Mundial que vive com a sua filha (Sissy Spacek), uma mulher gentil com deficiência intelectual. Quando Alvin recebe a notícia de que o seu irmão (Harry Dean Stanton) distante sofreu um derrame, ele decide embarcar numa viagem para visitá-lo, com a esperança de fazer as pazes antes que seja tarde demais.

Com as pernas e a visão prejudicadas, Alvin não tem condições de obter uma carta de condução. Assim, ele opta por uma solução improvável: engata um reboque no seu cortador de relva John Deere 110, que tem mais de trinta anos e uma velocidade máxima de cerca de 8 km/h.

Determinado a percorrer a longa distância de 240 milhas (390 km) de Laurens, Iowa, até Mount Zion, Wisconsin, ele parte numa viagem que, apesar de modesta nos meios de transporte, revela um grande feito de perseverança, solidão e reflexão.

Ao longo do caminho, Lynch vai além do simples relato de uma viagem física e leva-nos a explorar a complexidade emocional de Alvin. A jornada não é apenas um deslocamento de um lugar para outro, mas também uma viagem interior, onde Alvin se confronta com questões de arrependimento, reconciliação e a inevitabilidade da morte.

A simplicidade do cortador de relva como meio de transporte reflete a humildade do personagem e a fragilidade da vida humana, criando uma atmosfera poética e contemplativa.

“Uma História Simples” é um filme de respiro, onde Lynch nos apresenta uma narrativa minimalista, mas cheia de nuances e simbolismos. Ao contrário das suas obras mais surreais e complexas, aqui ele adota um ritmo mais pausado e introspectivo, permitindo que o público se envolva com as emoções silenciosas de Alvin e a beleza da sua jornada solitária.

O filme é uma meditação sobre a vida, o perdão e a reconciliação, temas universais tratados com a subtileza e a humanidade que se tornaram marcas da filmografia de Lynch. A experiência que ele oferece é, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre os pequenos gestos de coragem quotidiana e uma visão comovente da dignidade na velhice.

O desempenho de Richard Farnsworth neste drama lhe valeu uma nomeação ao Óscar de Melhor Ator na 72ª edição do prémio.

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