“Lembrete: este filme é uma comédia”. Alegadamente, era esta a inscrição que Federico Fellini colocou junto à câmara.
O filme abre com uma cena onde conhecemos o protagonista, Guido Anselmi (Marcello Mastroianni), que se encontra dentro de um carro, no meio de uma fila de trânsito caótico. Um misterioso fumo surge dentro do veículo de Guido, que luta para sair do mesmo, perante os olhares severos de indiferença presentes no rosto dos condutores e passageiros, também presos no trânsito. Sem ajuda, consegue sair pela janela, e coloca-se no tejadilho do seu carro para, logo depois, começar a voar (um duplo simbolismo, a escapatória da realidade, quer no próprio sonho, quer no voo que acontece neste). Após algum tempo no ar, Guido avista uma estrutura metálica bastante grande, e mais tarde vamos saber que está a ser construída para o filme que ele vai realizar. De seguida, dois associados do cineasta aparecem na praia, e puxam-no, com uma corda, fazendo com que caia do céu e se vá despenhar em terra, acordando assim do seu sonho.
No cinema empregar o termo “regra” pode dar azo a várias interpretações, ou discussões, mas uma que é reconhecida, e até recomendada, é que a cena inicial de qualquer filme consiga: introduzir o protagonista; comunicar o(s) seu(s) objetivo(s) e (alguns) traços de personalidade; apresentar o tema geral da história; e cativar a atenção do espectador. Com esta cena, Fellini faz tudo isso, e a opção de usar o sonho como meio de o comunicar é muito interessante, abrindo assim um leque de possibilidades a explorar no modo da construção narrativa. Esta cena inicial tem algumas semelhanças com um filme lançado um ano antes, “A Infância de Ivan”, do realizador russo, então estreante na sétima arte, Andrei Tarkovsky, pois também o recurso ao sonho (e ao voo da personagem principal) foi usado de maneira a abrir a obra.
Guido acorda. Há médicos no seu quarto. Ele está doente, algo fraco, segundo o especialista, sendo-lhe recomendado um período de descanso e recuperação numa estância termal. O que parece promissor, depressa se revela infrutífero. O protagonista é um realizador de cinema prestes a começar as rodagens da sua próxima obra, constantemente interpelado por agentes, atores e atrizes, técnicos da equipa de produção ou direção de arte, o próprio produtor que financia a obra – só a nave espacial tem um custo à volta de 80 milhões de liras.
Além disto, tem a sua amante hospedada num hotel não muito longe da estância termal, e mais tarde convida a sua esposa para se juntar a ele, porque sente a sua falta. Entre tudo isto, talvez o pior seja o facto de que este realizador se esqueceu do filme que tinha em mente. Os seus dias passam por aguentar todas as perguntas, adiar todas as respostas, enquanto tenta manter algum equilíbrio emocional, devido à sua vida pessoal que está perto de se desmoronar, e ainda há a sua saúde fragilizada. Talvez por tudo isto, Guido Anselmi passe quase tanto tempo a sonhar, fantasiar e recordar a sua infância, quanto passa acordado.
Podemos dizer que o protagonista vive muito mais na sua cabeça do que no mundo real, o que o leva a tentar escapar de toda esta confusão, para ser inevitavelmente arrastado para a realidade, tal e qual como na cena de abertura. Estas tentativas de escapar residem também nas suas recordações da infância, a sua vontade de regressar a tempos onde tudo é mais fácil e a felicidade parece não se esgotar, bem como nas suas fantasias, em especial destaque o harém criado com todas as mulheres que passaram pela sua vida, onde Guido é fruto de todas as atenções e reina a seu bel-prazer.
No mundo do real, tem uma esposa, Luisa (Anouk Aimée), uma mulher culta, intelectual, mas com quem Guido não consegue comunicar; uma amante, Carla (Sandra Milo), superficial e espalhafatosa, que lhe inflama a libido; e ainda a sua musa, a mulher ideal, Claudia (Claudia Cardinale), uma atriz que vem para trabalhar no seu filme. Aquela que ele idealiza como a sua salvação, que junta as (boas) características das mulheres anteriores, e que ele julga que lhe dará respostas às suas perguntas. De facto, é com esta última que se abre e expõe os seus pensamentos íntimos – se bem que sob o pretexto desses pensamentos serem a premissa do filme. Após este diálogo a sós, todos aparecem para os incomodar, para introduzir de novo o caos na vida de Guido, que tanto precisa de respostas, mas não lhe agrada a que ouviu de Claudia: a “personagem” do filme inexistente de Guido quer recomeçar a sua vida, renunciar a nada e ficar com tudo, e encontra uma mulher de branco, que serve água na fonte, a sua salvação, mas acaba por rejeitá-la. A tudo isto, e às respostas subsequentes de Guido, Claudia apenas diz “porque não sabe amar”, referindo-se à tal personagem do filme, que na verdade é o próprio Guido.
A nível técnico este 8½ é inventivo e inovador, em especial na estrutura narrativa usada para expor a história. A fotografia a preto e branco é excelente. Há poucos realizadores que usem o espaço de maneira tão eficiente como Fellini: um exemplo são os seus enquadramentos em planos gerais, que seguem personagens a caminhar e se vão aproximando da câmara até estarem em grande plano. A banda sonora de Nino Rota é fantástica e vai de encontro ao que o realizador gosta, com muitas cenas de dança, outras com música diegética e ainda alguns movimentos coreografados que fazem lembrar marchas populares ou animações circenses (a cena final é aquela que salta imediatamente à cabeça). Marcello Mastroianni é sublime enquanto Guido Anselmi, talvez porque, como o próprio disse em entrevista, “eu fiz esses dois filmes [“8½” e “A Doce Vida”] não como actor, mas como homem” (…) “Eles [os filmes] são o melhor espelho do meu “eu” real”. É notório ao ver o filme que uma certa qualidade humana, e não de actuação, chega até nós, espectadores. A vulnerabilidade, indecisão e indiferença de Guido são visíveis e sentidas por nós, daí a efectividade da sua representação.
8½ é uma alusão ao número de obras realizadas por Fellini até então (seis longas, duas curtas e uma co-realização, daí a “metade”), mas a bela confusão era o título da obra enquanto estava em desenvolvimento, e é o que este filme é. Desde a mistura de sonhos, recordações, fantasias e realidade, ao estudo de uma personagem melancólica, indiferente e sem capacidade para amar, que tem tanto de Mastroianni como do próprio Federico Fellini, até porque a ideia para este filme surgiu quando o próprio realizador italiano se esqueceu da obra em que estava a trabalhar, após o estrondoso sucesso de “A Doce Vida”, em 1960. Nas palavras do próprio Fellini, entrevistado por Oriana Fallaci (tradução livre): “Eu tive a ideia de fazer um filme sobre um realizador que quer fazer um filme, mas não se consegue lembrar sobre o que é. Sim, Guido Anselmi está a experienciar neste filme algo que em parte eu experienciei. E em conclusão, se lhe podemos chamar isso: nunca nos devemos esforçar demasiado a tentar compreender, mas antes tentar sentir. Devemos aceitar-nos pelo que somos: é isto que eu sou e é assim que estou contente por ser. Eu quero parar de criar mitos à minha volta, quero-me ver como sou.”
Uma obra que junta surrealismo, drama e comédia, o melhor filme sobre fazer cinema que existe, mas, além disso, é uma obra pessoal e autobiográfica, que retrata a condição do homem moderno dos meados do século XX, uma obra que, quando a acabamos de ver, nos faz questionar se sabemos o que estivemos a ver, mas não se enganem: isso é bom, porque só quando se acaba um filme muito vazio podemos ter toda a certeza do mundo daquilo que se passou diante dos nossos olhos. E isso é tão verdade para o cinema como o é para a vida.