O Cinema 7ª Arte comemora hoje o seu 9º aniversário com a publicação de alguns artigos dedicados à ocasião. Criado em 2008 com o objectivo de divulgar e partilhar o gosto de ver cinema, passados nove anos continua a mesma vontade e paixão pelo cinema. Com os seus altos e baixos, o Cinema 7ª Arte continua ativo e a tentar proporcionar informação e debate pelo cinema aos seus leitores.
Em 2016, o 8º aniversário foi dedicado a Abbas Kiarostami, o mais premiado dos cineastas iranianos, que faleceu a 4 de julho de 2016, aos 76 anos. Este ano dedicamos o 9º aniversário a um dos grandes nomes da história do cinema e da comédia, Buster Keaton. 2017 marca o centenário da primeira aparição de Buster Keaton no cinema, uma participação na curta “The Butcher Boy”. Keaton, amigo e rival de Chaplin, foi um dos maiores cómicos do cinema mudo, de onde se destacam os filmes “Sherlock Jr.” (1924), “Go West” (1925), “Pamplinas Maquinista” (1926), “O Cameraman” (1928), “O Herói do Rio” (1928) e muitos mais. Com a chegada do cinema sonoro a sua carreira decaiu, sendo que “A Comparsa” (1929) foi o seu último filme mudo. Devido a problemas de alcoolismo, Keaton foi despedido nos anos 30 do estúdio da MGM. Reapareceu nos anos 50 em alguns filmes, como por exemplo, em “Luzes da Ribalta” (1952) com Chaplin, em “O Crepúsculo dos Deuses” (1950) e “A Volta ao Mundo em 80 Dias” (1957).
Daqui a um ano (2018) comemoramos uma década de existência e temos várias ideias para artigos especiais a publicar nessa ocasião. Mas para já ainda vamos no nono ano e achamos que seria interessante começar por escrutinar o primeiro ano do Cinema 7ª Arte, ou seja, 2008, o nosso ano zero. Recuemos nove anos para ver como estava o cinema nesse ano de 2008:
Dos vários cantos do mundo chegaram-nos filmes como: “Alexandra” do russo Alexander Nikolayevich Sokurov; “Gomorra” do italiano Matteo Garrone; da Itália veio também “Caos Calmo” de Antonio Luigi Grimaldi, protagonizado por Nanni Moretti, um filme comovente sobre o processo de luto; da Roménia chegou-nos “4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias” de Cristian Mungiu (Palma de Ouro de Cannes 2007), sobre o aborto clandestino na Roménia durante o comunismo, criticando o poder político e corrupto deste país; a Espanha marcava-se com um novo tipo de filmes de terror como o “REC”, de Jaume Balagueró e Paco Plaza; e o Brasil apostava num outro tipo de cinema, com “Tropa de Elite” de José Padilha (Urso de Ouro em Berlim em 2008), um filme violento que mostrou ao mundo o complexo sistema das favelas e da criação do BOPE (o Batalhão de Operações Especiais da polícia militar do Rio de Janeiro).
O cinema francês estreava por um lado o emocionante “A Turma” de Laurent Cantet (vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes), um retrato real sobre as diferenças multiculturais dos grandes centros urbanos e sobre o desafio de ensinar que os professores e o sistema de ensino tem pela frente; ou a comovente e trágica animação “Persépolis”, de Marjane Satrapi e Vincent Paronnaud, onde através da ousadia da jovem rapariga Marjane percorremos a Revolução islâmica e o fundamentalismo religioso no Irão, tornando este um filme bastante político; e por outro o enorme sucesso de bilheteira em França que teve a comédia “Bem-Vindo ao Norte” de Dany Boon.
Dos EUA vieram filmes como o épico e talvez um dos melhores filmes de Paul Thomas Anderson, “Haverá Sangue”; os irmãos Coen voltavam a surpreender com o thriller “Este País Não é Para Velhos”, transformando Javier Bardem numa das personagens mais terríveis da história do cinema; Johnny Depp voltava a juntar-se a Tim Burton para mais um filme inesquecível desta dupla, com “Sweeney Todd: O Terrível Barbeiro de Fleet Street” (uma referência para o género musical); Wes Anderson apresentava uma família disfuncional e peculiar em “The Darjeeling Limited”; Michael Haneke apresentava uma versão norte-americana do seu filme homónimo de 1997, “Brincadeiras Perigosas”; e o artista plástico britânico Steve McQueen estreava-se nas longas-metragens com “Fome”.
Já Hollywood estreou a quarta aventura de Indiana Jones, “Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal” de Steven Spielberg; Christopher Nolan continuava a segunda aventura do super herói Batman com “O Cavaleiro das Trevas”; e a Pixar apresentava ao mundo a sua visão do futuro com uma bela animação sem diálogos, com “Wall-E”.
Filmes como “O Menino de Cabul” de Marc Forster, “Juno” de Jason Reitman, “O Lado Selvagem” de Sean Penn, “Goodnight Irene” de Paolo Marinou-Blanco (com Nuno Lopes), “O Segredo de um Cuscuz” de Abdellatif Kechiche, “Madagáscar 2” de Eric Darnell e Tom McGrath, “California Dreamin’” do romeno Cristian Nemescu, são também mais algumas das grandes referências cinematográficas que por cá estrearam em 2008.
Quanto ao cinema português, foi um ano marcado pelo sucesso de bilheteira do filme biográfico “Amália – O Filme” de Carlos Coelho da Silva, visto por mais de 214 mil espectadores. O tão aguardado “Amália” que iria internacionalizar o cinema português, acabou por ficar em território luso e esquecido. Outro filme que tentou ser comercial e de massas foi o filme de ação “Arte de Roubar” de Leonel Vieira, visto por mais de 29 mil espectadores. Mas foi “Aquele Querido Mês de Agosto”, a segunda longa-metragem de Miguel Gomes, que certamente marcou o cinema português e que o internacionalizou nesse ano. O cinema português fez-se também com filmes como: “The Lovebirds” de Bruno de Almeida; João Canijo estreava “Mal Nascida”; Inês de Medeiros, com “Cartas a uma Ditadura”, recordava os anos do salazarismo através do olhar e testemunho de várias mulheres; o mestre Manoel de Oliveira evocava mais uma vez os descobrimentos portugueses através da figura de Colombo (que era português) com “Cristóvão Colombo – O Enigma”.
Para além dos muitos filmes que estrearam nesse ano, o ano de 2008 foi um ano triste por ter visto partir várias estrelas do cinema como Heath Ledger, Paul Newman, Mel Ferrer, Roy Scheider, Charlton Heston, Sydney Pollack, Cyd Charisse e Peter Copley.
Dois mil e oito foi portanto um ano marcado por grandes filmes, tendo alguns colaboradores do Cinema 7ª Arte escolhido um filme que os tenha marcado nesse ano.
Mais uma vez, muito obrigado a todos aqueles que visitam o site diariamente e um especial agradecimento aos colaboradores: Eduardo Magueta, Cláudio Azevedo, Pedro Henrique, Teresa Vieira, José Alberto Pinheiro, Sérgio Miguel Silva, Regina Machado, Gisela Leal, Nuno Oliveira.
São nove anos de cinema!
[divider]“Haverá Sangue”[/divider]
Escolha de Cláudio Azevedo
A minha escolha recai sobre «Haverá Sangue», de Paul Thomas Anderson. Há filmes que se aproximam de ideias universais que nascem dos instintos primitivos do homem, neste filme é a ganância que é mostrada de uma forma bastante clara, por entre tanto negrume, dentro e fora da alma. É desde a vida de Daniel Plainview que o filme ganha corpo. A sua transformação é ambígua, desde que adopta uma criança – que fica sem pai num dos seus primeiros poços de petróleo – até à nossa descoberta do significado desse gesto, percebemos que um aparente acto humano, afinal não passou de uma manobra de marketing, de uma manipulação emocional para poder levar a cabo o seu negócio comuma maior eficácia. A religião aparece como elemento moralizador, a promessa de cura que domestica corpos e consciências, que aparentando um altruísmo que pretende acabar com o egoísmo desmedido do protagonista, acaba por deixar cair a sua máscara e revelar a sua génese num mesmo instinto egoísta, que de tal como Daniel, pretende sugar matéria e riqueza às custas de alguma fraqueza ou simples ingenuidade.
O argumento é adaptado da obra «Oil!» de Upton Sinclair, e as imagens em que Anderson a traduz, quebra a velha ideia de que o cinema fica aquém da literatura, mostrando que o cinema também é uma nova forma de dar a ver as palavras, que consegue alcançar uma riqueza estética singular, que acaba por deitar abaixo o sentido da comparação entre as duas artes.
Daniel Day-Lewis é um poço de coisas vivas, de emoções; tal como o petróleo, é um corpo inflamado, volátil, pronto a trazer até à superfície de si mesmo a chama que se faz visível e que afecta o espectador ao mesmo tempo que o deslumbra.
«Haverá Sangue» é a prova que haverá cinema e que a criação artística é, desde sempre e para sempre, a maior forma de resistência contra a insustentável gravidade do tempo.
[divider]“Homem de Ferro“[/divider]
Escolha de Eduardo Magueta
Algumas modas vêm e vão. É incrível como o tempo voa e mais incrível ainda é olhar para trás e ver quais as modas que conseguiram pegar e quais as “brilhantes ideias” que desapareceram sem consequências. Nos últimos dez anos duas enormes modas apareceram para varrer quase por completo Hollywood: A nostalgia, com todos os remakes e cinematografias Retro e auto-proclamadas homenagens ao Passado (geralmente anos 80) e também os Universos Cinematográficos, estes valentes empreendimentos multi-filme que exige que tudo esteja interligado e nada tenha fim, nunca, jamais, em vez alguma.
É por isso que aproveito este texto para relembrar “Iron Man”. É uma obra-prima cinematográfica? Não. Um filme memorável? Nem por isso. É Cinema competente mas não virtuoso. Mas “Iron Man” é também o início dessa tal moda que brilha com todos os cifrões do mundo e que faz com que quase todos os grandes estúdios movam mundos e fundos para fazer parte dela. O Universo Cinematográfico da Marvel leva já dezasseis filmes feitos com mais meia dúzia a caminho, mais as séries na TV e Netflix. A Warner lançou-se de cabeça e começou a fazer o mesmo com as suas personagens da DC Comics. A Disney, casa-mãe da Marvel investiu forte no Universo Star Wars e agora todos os anos irá sair um novo filme ligado ao Universo da narrativa original. A Universal começou com estrondo (pela negativa) a refazer todos os seus famosos filmes de monstros de forma a que façam todos parte do mesmo Universo. Godzilla e King Kong irão encontrar-se no Cinema (outra vez) a Sony refez o “Ghostbuster”, só que não exactamente, é um reboot mas que acontece no mesmo universo mas as personagens são a modos que diferentes e até a HASBRO, famosa empresa de brinquedos (que já tem vários investimentos no cinema como G.I Joe e Transformers) anunciou uma data de filmes inspirados em famosas propriedades como “Action Man” e “Monopólio” (e quem não quer ver na grande tela as aventuras do senhor do Monóculo?)
Universos partilhados não são coisa nova no Cinema e na TV. Tarantino já o faz há muito tempo, por exemplo, alinhando todos os seus filmes numa única linha temporal, bem como Kevin Smith com o seu View Askewniverse e temos também por exemplo os encontros entre Freddy Krueger e Jason Vorhees, bem como dos Aliens e dos Predadores, portanto não se pode colocar a paternidade do fenómeno toda nas mãos da Marvel. O que se pode culpar é sim “Iron Man” por ser o filme que pegou nesta ideia e a elevou ao seu mais alto pico de popularidade, fazendo por isso com que considere este filme como um dos mais marcantes de 2008.
[divider]“Este País Não É Para Velhos“[/divider]
Escolha de Pedro Henrique
Em 2008 o cinema, para mim, era uma forte predileção e um prazer intenso, cinco anos antes de começar uma educação formal na área. A corrida aos Óscares era o ponto alto tentando perceber e prever as escolhas da academia. No ano do soberbo “Haverá Sangue” de Paul Thomas Anderson estava dividido com o filme que poderia superar a experiência visceral que tinha visualizado na sala de cinema. Porém, faltava conhecer Anton Chigurh (Javier Bardem).
Essa é personagem mais memorável que todos se lembrarão com a sua moeda, à vilão de Batman, com a qual decide a sorte dos que cruzam o seu caminho com a botija de ar pressurizado para matar suínos – ferramenta transformada em arma implacável. Contudo, a obra é mais profunda. O romance adaptado de Cormac McCarthy pelos Cohen Brothers, uma união perfeita, leva-nos ao mais interior dos Estados Unidos rurais e ao mais profundo interior dos que a habitam.
A personagem desempenhada por Tommy Lee Jones, um velho xerife, Ed Tom Bell depara-se com um tipo de criminalidade e pensamento, para o qual já não tem explicação, nem mundividência para apreender, metonímia de um mundo do qual já não se sente apto a participar. Se acompanharmos a cinematografia dos irmãos Cohen, como por exemplo o Fargo ou até a série homónima de Noah Hawley produzida pelos irmãos, deparamo-nos com forças policiais que em locais remotos e inóspitos, fazem parte da comunidade e zelam pela mesma, sem exercer força, sem as investigações que vemos excessivamente na grelha televisiva. Forças de autoridade que conhecem as pessoas pelo nome próprio e pelo nome de família, cuja arma é um adereço do uniforme. Este filme mostra-nos como isso mudou, sem possibilidade de retorno.
Ed Tom Bell no monólogo inicial revela: I always knew you had to be willing to die to even do this job. But, I don’t want to push my chips forward and go out and meet something I don’t understand. Apesar de o imaginário Americano estar povoado de xerifes impiedosos no Velho Oeste que mantinham a lei pela bala, Ed é de outra cepa, vindo de uma longa linhagem de agentes da lei, que nem sequer usavam arma, porque não tinham necessidade. Ed já não entende e não deseja arriscar todas as suas fichaspara viver num mundo em que a criminalidade é um negócio, em que o dinheiro impera, o arsenal é de guerra e a desumanização faz parte dos milhões, em que a vida de uma pessoa é apenas um detalhe de uma face numa moeda ao ar.
Os filmes dos Cohen Brothers exigem bastante do espectador, na medida em que abordam facetas dos Estados Unidos que não fazem parte do ‘sonho americano’. É essencial conhecer aqueles estados de perder de vista entre Nova Iorque e Los Angeles e as pessoas que os habitam. Há uma inocência que se perdeu para sempre neste país líder do mundo livre, presente neste filme e na desistência de Ed, na sua intenção de se reformar, por a sua terra já não existir, enquanto conceito social feito à medida da pessoa. Há interesses mais fortes que a vontade dos seres humanos, conforme se comprova na indómita perseguição de Chigurh, sem derrota, quase sobre humana, e xerifes que não compreendem mass shootings e para os quais as mentes dos criminosos não são familiares, nem do âmbito da compreensão humana. Será que ainda retínhamos a esperança em 2008? E em 2017? Pelo menos, retivemos um filme brilhante que se prolonga para além da tela, para o nosso juízo.
[divider]“Aquele Querido Mês de Agosto“[/divider]
Escolha de Tiago Resende
Meu ‘querido’ cinema português que viu nascer Miguel Gomes e as suas fantasias ficcionais, que repensam o próprio cinema e derrubam as fronteiras entre o documentário e a ficção. Escolho “Aquele Querido Mês de Agosto”, a segunda longa de Miguel Gomes, por ter sido um dos mais importantes marcos do cinema português do pós 25 de abril e certamente das obras mais revitalizadoras de 2008.
Fazendo a ponte entre o documentário e a ficção – numa obra onde os bailaricos, o karaoke, as festas de verão, os incêndios, as rumarias, as tradições dos imigrantes que chegam a Portugal durante o mês de agosto e também o próprio cinema – este é um filme que se constrói e o espectador acompanha todo esse processo.
Mergulhado no imaginário do mundo rural de Portugal, Miguel Gomes, com o seu inteligente sentido de humor, reflete sobre a vida no interior do país, que está envelhecido e que é revisitado apenas pelos imigrantes nas festas de Verão.
A música é mais uma das muitas personagens, sempre presente e participativa durante todo o filme. A música popular, também conhecida como ‘música pimba’, é aqui apresentada com respeito e valor, sem qualquer tentativa de menosprezo. O ‘Pimba’ e as suas letras são a alma desta obra, exprimem os sentimentos de todo este universo do interior rural português.
“Aquele Querido Mês de Agosto” pode ser dividido em duas partes, sendo a primeira a mais documental e a segunda parte a mais ficcional. A primeira, muito bem conseguida, onde o realizador procura os lugares e as pessoas a retratar, da região de Arganil. É também nesta parte que vemos Miguel Gomes (o realizador) e toda a sua equipa técnica que está com dificuldades em dar inicio às filmagens do filme e um produtor com dificuldade em financiar o mesmo. É o filme dentro do filme. Já a segunda parte, igualmente bem conseguida, mas que não sobreviveria sem a primeira, foca-se numa história de amor ficcionada recorrendo a não atores (habitantes) daquela região que representam pela primeira vez no cinema.
Deste modo, as duas partes transformam-se numa obra inovadora e bela. Uma obra intemporal que aparenta ser simples, mas cheia de significados que nos obriga a refletir conceitos como o cinema etnográfico, cinema documental, o cinema dentro do cinema e a cultura popular.