A aprovação no dia 4 pela Câmara dos Deputados da regulamentação dos serviços de streaming no Brasil marca um momento de grande importância simbólica para o audiovisual nacional. Ao mesmo tempo, porém, revela fragilidades que colocam em dúvida a autonomia e a diversidade da produção independente.
O Projecto de Lei n.º 8.889 de 2017, criado pelo deputado licenciado Paulo Teixeira e relatado pelo deputado Professor Dr. Luizinho, apresenta avanços formais, entre eles a exigência de quotas mínimas de obras nacionais nas plataformas e a criação da Condecine Remessa, uma taxa sobre o dinheiro que as empresas de streaming enviam para o exterior.
Mas os detalhes técnicos, que podem parecer apenas burocráticos, terão um impacto muito mais profundo no futuro da cultura audiovisual brasileira do que o texto principal do projecto faz supor.
O ponto central do debate está na diferença de poder entre as grandes plataformas, como Netflix, Amazon Prime, Disney+, Globoplay e YouTube, e os produtores independentes. Essas empresas passarão a pagar a Condecine, com uma alíquota que pode variar entre 0,1% e 4% da receita bruta anual. Caso mais da metade do catálogo seja formado por produções nacionais, o valor pode ser reduzido em até 75%.
Em teoria, parece uma vitória. Na prática, porém, é uma mudança limitada que não altera o cenário de concentração cultural. A lei não cria mecanismos que redistribuam efectivamente poder no sector, deixando nas mãos das próprias plataformas a decisão sobre quais obras apoiar, em que regiões investir e que narrativas promover.
Um exemplo disso está na forma como a lei contabiliza produções, pois um episódio curto de série e um longa-metragem têm o mesmo peso. Culturalmente, é um erro. Essa lógica favorece conteúdos rápidos, produzidos em série, pensados para algoritmos e grandes audiências, e não para o cinema como linguagem artística e reflexiva. O cinema independente, que se apoia na experimentação e na profundidade narrativa, acaba reduzido a mero fornecedor de conteúdo para preencher quotas, sem reconhecimento estético ou crítico.
A resposta do sector audiovisual foi imediata. O cineasta Kleber Mendonça Filho, que divulga actualmente “O Agente Secreto”, lembrou que países como a França têm políticas claras para financiar o cinema, preservar acervos e formar público. A ausência de medidas semelhantes no Brasil revela um atraso estrutural e a falta de prioridade cultural. Para os cineastas independentes, a questão não é apenas garantir recursos, mas assegurar que o Brasil continue capaz de contar as suas próprias histórias e reflectir sobre a sua memória colectiva.
Matheus Peçanha, da Associação de Produtores Independentes, criticou a dedução de até 60% dos investimentos, que permite às plataformas escolher livremente quais produções apoiar, o que costuma favorecer conteúdos ligados a grandes canais e conglomerados. Isso cria um precedente perigoso de subordinar a política cultural à lógica de mercado. Regiões como Centro-Oeste, Norte e Nordeste, que nos últimos anos conquistaram espaço no audiovisual brasileiro, podem ser novamente marginalizadas.
O debate vai além do dinheiro. Trata-se de discutir quem decide o que é o cinema brasileiro e quais histórias merecem ser contadas. A regulamentação transfere esse poder para as plataformas, fragilizando as políticas públicas e a produção independente. Essa tensão não é nova, pois já estava presente no Cinema Novo, quando os realizadores lutavam por uma identidade própria diante de pressões políticas e comerciais. Hoje o desafio reaparece sob a forma de algoritmos e quotas numéricas, que correm o risco de reduzir a diversidade cultural a um cálculo de audiência.
A Condecine Remessa, que cobrará 11% sobre valores enviados ao exterior com desconto caso parte seja reinvestida em produções independentes, é uma ideia positiva, mas limitada. O montante arrecadado é pequeno diante do poder financeiro das plataformas. Assim, a lei corre o risco de se tornar apenas um gesto simbólico, sem alterar de facto quem decide o que será produzido e exibido no país.
Na véspera da votação, manifestações em cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Porto Alegre mostraram que o sector não aceitará o texto sem contestação. Os actos, chamados Pega a Visão Ato pelo VoD, reuniram cineastas, argumentistas, produtores e técnicos que vêem a proposta como uma ameaça à produção independente. A cineasta Lúcia Murat comparou a medida a uma Lei Rouanet para streamings, que poderia acabar por financiar corporações estrangeiras com recursos públicos. Já Laís Bodanzky defendeu que pelo menos 20% do catálogo das plataformas seja formado por obras brasileiras, lembrando que, embora as empresas possam investir com recursos próprios, não devem decidir sozinhas o que o país comunica culturalmente.
Regular o streaming não é apenas organizar um mercado, é definir o que o Brasil quer preservar como memória e identidade. Quem controla as histórias contadas molda a forma como um país se enxerga. Se o streaming se limitar a buscar lucro, a produção independente será empurrada para as margens e o público perderá contacto com narrativas que reflectem a sua própria realidade. O risco é criar uma ilusão de diversidade, enquanto as decisões continuam concentradas em poucas mãos.
O debate também contrapõe o curto e o longo prazo. As plataformas buscam lucro rápido e engajamento imediato, enquanto o cinema independente precisa de tempo, investimento e continuidade. Sem uma regulamentação que garanta investimento real e visibilidade, a produção cultural brasileira pode tornar-se dependente de escolhas feitas fora do país, guiadas por algoritmos e estratégias comerciais, e não pela visão dos seus criadores.
A aprovação na Câmara não encerra a discussão. O Senado será o palco dos ajustes e possíveis correcções. O que se vê é um sector mobilizado e consciente de que cultura não se defende de forma passiva. Uma regulamentação que não valorize a produção independente é um retrocesso e uma oportunidade perdida de fortalecer o cinema brasileiro.
Em última instância, o Projecto de Lei n.º 8.889 de 2017 é um teste às prioridades culturais do Brasil. O país precisa decidir se quer um audiovisual concentrado nas mãos de poucos ou aberto à pluralidade e à experimentação. O streaming, por si só, não é um problema, o que importa é como será regulado. Dessa escolha depende o futuro do cinema brasileiro, a visibilidade das regiões historicamente negligenciadas e o direito de contar histórias que só o Brasil pode contar.
O desafio é grande, regular sem engessar, incentivar sem perder autonomia, promover diversidade sem criar burocracias inúteis. A mobilização da classe audiovisual mostra que o país está diante de uma encruzilhada. O que está em jogo não é apenas uma taxa ou uma quota, mas a capacidade de o Brasil produzir cultura própria, sustentar narrativas independentes e preservar a sua memória artística para as próximas gerações.

