“O Agente Secreto”: memórias de um país em surdina

Quando a sessão acabou, deu-me uma tristeza boa, uma saudade funda, daquelas que apertam o peito e fazem suspirar devagar
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"O Agente Secreto", de Kleber Mendonça Filho

O Brasil é, como disse Kleber Mendonça Filho numa das entrevistas que concedeu, um país em que se evita falar sobre as coisas. E a frase, embora aparentemente simples, é inquietantemente exacta, porque se aplica tanto ao filme como à própria geografia afectiva e histórica deste país, que tantas vezes prefere o silêncio ao confronto com o seu próprio passado.

É de “O Agente Secreto”, a mais recente obra de Kleber, que falo agora, um filme que desperta ansiedade e expectativa, não apenas por ter sido escolhido pelo Brasil para, quem sabe, tentar uma vaga no panteão dos Óscares, tal como sucedeu com “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, mas sobretudo pela forma delicada e precisa com que aborda aquilo que normalmente se procura ocultar.

A narrativa inicia-se com Marcelo (um codinome), papel de Wagner Moura, cuja figura rapidamente se funde com a de um homem comum. Marcelo chega a Recife, cidade que Kleber conhece com intimidade e que os seus filmes parecem habitar com a mesma devoção com que se habita uma memória própria, num Fusca discreto, carregando uma vida aparentemente banal, uma esposa falecida, um filho, um sogro que trabalha numa sala de projecção de cinema. Mas o quotidiano de Marcelo, como tantas vezes sucede em períodos de opressão, é apenas a superfície de um oceano de incertezas.

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O homem entra num prédio em que uma pequena comunidade se oculta, um espaço onde o medo é mais do que atmosfera, é lei reticente. O espectador, à semelhança de Marcelo, não sabe em quem confiar, e é exactamente essa dissonância que faz do filme uma alegoria tão precisa da ditadura de 1977.

Dentro desse prédio, os símbolos multiplicam-se com subtileza: uma gata de dois rostos, olhares furtivos, gestos contidos que denunciam tensões invisíveis. É nesta quase suspensão do real que a ditadura se manifesta, não se trata apenas de repressão explícita, mas de um medo difuso, de uma vigilância permanente e do reconhecimento de que qualquer acto, por mínimo que pareça, pode ser interpretado como subversão. Marcelo é de repente participante involuntário de um estado de excepção, revelando-nos que a opressão, para ser eficaz, não precisa de escolher alvo por mérito ou ideologia, basta existir, existir com liberdade mínima, para ser suficiente motivo de perseguição.

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Marcelo e os “refugiados” do Edifício Ofir.

E é nesta moldura de terror subtil que o filme se torna simultaneamente memória e resistência. Para Andrei Tarkovski, o cinema não capturava apenas imagens, capturava o tempo, a sua passagem, e o modo como este gravava a vida na memória do espectador. Cada plano de “O Agente Secreto” parece assim interiorizar esta máxima, preservando não apenas a cidade de Recife, com os seus carros, as suas esquinas e lendas urbanas como a da perna cabeluda, mas também a sensação temporal de uma época, a tensão invisível, o medo e a ansiedade que permeavam os dias, o silêncio que sufocava e a urgência de viver apesar de tudo.

Mas, tal como Tim Burton nos lembra, o estranho e o grotesco também são línguas da verdade. A estética quase caricatural de certos detalhes, como a gata de dois rostos ou a referência ao clássico “Tubarão”, de Steven Spielberg, enfatiza a estranheza da vida sob repressão e a fragilidade da humanidade quando confrontada com o absurdo da vigilância e do perigo intangível. A memória, nesse sentido, não é apenas histórica, é sensível e afectiva. É a memória de um espaço que nos toca, que nos envolve, que nos torna conscientes daquilo que fomos e do que corremos o risco de esquecer.

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Cartaz de “Tubarão”, de Spielberg, que mete medo ao filho de Marcelo.

Os actores são a pulsação desta memória. Wagner Moura deixa de ser actor para se tornar Marcelo: os seus olhares medem o medo, os gestos traduzem hesitações que as palavras não conseguem conter, e a sua presença é simultaneamente discreta e magnética. Tânia Maria, como Dona Sebastiana, imprime ao filme uma dimensão humanamente brasileira; ela é simultaneamente guardiã, avó, vizinha e memória viva do Brasil profundo, e nela vi a minha finada e querida avó Zezé, mãe do meu pai, que tanto me faz falta.

Há ainda subtilezas nos pequenos papéis: Carlos Francisco, Hermila Guedes, Alice Carvalho, Gabriel Leone, Rony Vilela, Maria Fernanda Cândido, Isabél Zuaa e Udo Kier, todos orquestrando nuances que revelam vidas entrelaçadas com a história e com o perigo, vidas que o espectador apenas pode observar quase com reverência, porque o silêncio é lei e a compreensão é lenta.

A Lei da Anistia de 1979, mencionada com precisão pelo realizador, torna-se sombra sobre a narrativa. Perdoou os perpetradores, ignorou as vítimas e consolidou o hábito nacional de evitar certas conversas, de criar esquecimentos institucionais. O filme rompe esse remanso, evocando aquilo que o país tantas vezes prefere não revisitar: mortes arbitrárias, privilégios ilegítimos e uma opressão disfarçada de mundo perfeito, à maneira de “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll. É um vestígio não só dos que foram atingidos, mas de toda uma sociedade que, muitas vezes sem consciência disso, carregava as marcas do regime, o medo e as feridas latentes impostas pelo Estado.

Mas “O Agente Secreto” é também, paradoxalmente, ternura e tato. Ao preservar a memória da cidade, ao delinear com delicadeza as relações humanas, o medo de Marcelo, a paciência de Dona Sebastiana, a atenção de Cláudia, o cuidado de um sogro num cinema de rua, Kleber transforma o filme em acto de resistência e em celebração da humanidade que persiste mesmo quando o mundo parece conspirar contra ela. Cinema, aqui, é arte e energia, é a projecção da memória, é o recuo do esquecimento, é a arma contra a tragédia das coisas. Wim Wenders disse que a câmara é uma arma; Kleber, com paciência e precisão, prova-o.

O filme não é apenas histórico nem destinado apenas ao público brasileiro, é universal. Mostra que os efeitos de um estado de excepção, de um regime totalitário, não se limitam a elites ou militantes, mas atingem todos. Marcelo, um simples professor universitário, sofre e resiste como os heróis anónimos da cidade, aqueles que caminham pelas ruas do Recife, que observam pelas janelas e que se escondem com medo, amor e esperança. Esta é a lição mais profunda do filme, a de que a coragem nem sempre é grandiosa ou visível, mas se manifesta, muitas vezes, em pequenos gestos de sobrevivência, amizade, memória e afecto.

Saí do cinema meio atravessado. A gente entra inteiro, sai remexido. O olhar muda, o ar entra diferente, o mundo parece outro. De repente, o poder, o medo e o silêncio ganham cara, corpo, cheiro. O filme faz pensar no país, na gente, no tanto que guardamos sem dizer. “O Agente Secreto” fala de ditadura, de memória, de cidade, de gente viva. E, no fim das contas, fala é da coragem silente de continuar a sentir, mesmo quando falar pesa, mesmo quando lembrar dói.

E é nesse silêncio bonito, quase calado, que o filme se ajeita e respira. Tem ali uma ternura qualquer, uma atenção miúda ao outro, dessas que a gente quase não repara, mas sente. Quando a sessão acabou, deu-me uma tristeza boa, uma saudade funda, daquelas que apertam o peito e fazem a gente suspirar baixinho, como quem se despede devagar. Parecia que o cinema tinha fechado a porta atrás de nós e deixado à solta a memória e a presença, para andarem por aí, a tocar-nos na pele, a embaraçar a garganta, a ficar no ar entre um olhar e outro.