Enigmático, com um encenação pausada e respirante, “A Assassina” é um filme dúplice: sussurra primeiro numa ambiência de serenidade e encanto visual – que acalma e adormece – e depois irrompe e explode para uma rapidez de movimento que energiza e potencia as cenas de luta. É simultaneamente, e sem auto-constrangimento algum, um filme de autor e um filme de ação, um filme de contemplação e um filme de velocidade, um filme de arte e um filme de técnica, binómios diversos para uma obra maior de Hou Hsiao-hsien.
No seu cerne, uma câmara tão quieta quanto ondulante: se os planos-tableau oferecem a oportunidade da temporalidade, do apercebimento do intrincado dos espaços, dos sucessivos movimentos de corpo e reposicionamentos das personagens, já as panorâmicas e travellings suaves, os movimentos de grua entre espaços, arquitetam um triângulo de técnicas que enlevam, como se o propósito de um filme sobre uma atividade de morte fosse antes o de ser um bailado audiovisual. A cena em que a câmara é repetida e sucessivamente velada por uma cortina em movimento, ora revelando nitidamente ora mostrando através de uma névoa-tecido, a conjunção objetiva/filtro cria a percepção de um véu diáfano, cintilado pela luz, enfeitiçando, levando à necessidade de curvar o corpo para poder ver o que está por detrás do cortinado.
Um outro aspeto técnico e estético essencial: o quadro em quadro, quadrado que estabiliza duas metades, faz ascender as linhas verticais e assenta as movimentações horizontais – o 1.37:1 (4:3) – ainda mais marca a ideia de uma mise en scène do estável. Não expandindo para os lados, Hou Hsiao-hsien centraliza o olhar, faz do ecrã um centro no centro, uma convergência que volta a dividir o quadro cinematográfico em duas metades iguais, a colocar a personagem no meio do quadro, a verticalizar as linhas. É um retorno a um outro modo de enquadrar e que obriga a um outro modo de ver, o qual pode desnortear ao princípio, mas que depressa dirige o olhar para a imagem enquanto centro de si mesma. Onde as coisas humanas acontecem e as paisagens nos surgem.
Voltando à névoa: esta perpassa todo o filme, como nos campos que as personagens atravessam, mais acrescendo a uma lógica de suspensão dos elementos, céu-terra, montanhas-água, reflexos e nebulosidades, árvores altas e longitudes. O caminhar no espaço que se espraia para o muito longe, tingido e amaciado pela neblina leve e silenciosa, circunscreve um caminho que Nie Yanniang não pode deixar de percorrer. O caminho-vetor, linha que atravessa o quadro em profundidade ou lateralidade, afirma a conclusão de uma missão – a inicial ou a encontrada – a necessária terminação enquanto cesura de um corpo que corta e dilacera, mas que não pode deixar de seguir em frente, postado contra a montanha muito alta, a planície muito longa, a neblina que a recorta e finalmente obtura. Libertação por fim, desvanecimento para além do nevoeiro.
Há, no entanto, uma outra névoa, “sobrenatural” e “enfeitiçada” como a que pretende consumir o corpo da jovem Huji. Mas esta névoa é construção do maligno, é do domínio do escuridão e das poções, dos líquidos fumegantes e dos pós que explodem em fumo, névoas outras que são já de cor, impuras, não construtoras de matizes que desenham e enquadram formas e corpos – como o nevoeiro/neblina natural – mas sim saturadas e impregnadas de mau-olhado e intriga.
Entre a espada e o amor, Yanniang é tanto uma mulher de ação quanto é uma em dúvida. Entre levar a cabo a missão e efetivar um controlo do interno e não matar o homem que ama e exteriorizar o que sente, ela vê-se perante a negação de um mapa de comportamentos prescritos e a positivação de um sentimento que só poderá constituir um deslocamento da sua formulação guerreira. Amar ou lutar? Aproximar ou golpear? No silêncio e na graciosidade dos seus movimentos, ela prossegue, de luta em luta, de lugar para lugar.
A leveza é então uma forma visual importante: os movimentos são rápidos, cortam o ar e sibilam, mas sempre em graça, os golpes podem matar, mas são limpos e cirúrgicos, as coreografias são coreografias em si mesmas, não se combate somente para o efeito, mas com efeito. Na sua rapidez de corte – primeiro golpe no campo, segundo golpe no contracampo, acalmia no plano conjunto de dois – as cenas de luta/ação possibilitam uma cinemática do ato enérgico, golpe-contragolpe-libertação, sem floreios. A leveza do golpe é toda essa: quando se nota, já ele foi desferido. Só se pode olhar para a ferida.
A ideia de lugar é também importante – as florestas de ramos que se cruzam, os troncos que sobem pelo enquadramento, os verdes fortes das folhas, os azuis vaporosos das águas em calma translação – porque efetiva a prescrição da terra enquanto domínio e enforma a matriz do enredo: é tudo sobre dominar o espaço territorial e político. Os mandantes e os assassinos são agentes de um sistema de forças e intrigas pelo poder de senhores e generais, cortes e palácios. A sumptuosidade de um palácio requintadamente construído não equivale ao orgânico térreo de uma aldeia feita de madeiras e palhas. São dois níveis diversos: poder e estar. Os senhores podem mandar invadir o lugar, decidem do palácio acima, do alto para a terra. Os aldeões estão no lugar, é-lhes seu, a terra. São imagens e cinemas diferentes. Esse desequilíbrio em equilíbrio define igualmente a força da encenação de Hou Hsiao-hsien: saturação, madeiras, trilhos desenhados, jardins, são o alto suspenso, desfasado; os caminhos, as florestas e caminhos abertos, os rios e as montanhas são o baixo firme, real. Desfasamento e realidade, intriga e verdade.
No fim, ela segue em direção do horizonte. Para onde ela vai, não se sabe. Poderia ser um western. Mas não é. É, na sua leveza, uma outra coisa qualquer.