Num ano onde o nosso quotidiano ficou repleto de limitações e onde os cinemas nos ficaram – e ainda permanecem -, de certa forma, interditos, Kelly Reichardt apresenta-nos o seu último filme, “First Cow”.
Reichardt adapta a obra literária de Jonathan Raymond, “The Half-Life”. A história foca-se em duas personagens: Cookie Figowitz (John Magaro), um cozinheiro que faz parte de um grupo de caçadores de peles e King-Lu (Orion Lee), um imigrante chinês com quem Figowitz acaba por se cruzar, ajudar, criar uma amizade e um pequeno, mas bem-sucedido, negócio.
A subtileza desconcertante com que Reichardt filma é, sem dúvida, aquilo que, imediatamente, “salta à vista”. E fazer algo “saltar à vista”, dentro de uma tela de cinema, não é pouca coisa. O verso de William Blake – “The bird a nest, the spider a web, man friendship” –, citado no início do filme, que contem a sabedoria zen de um haiku, traduz bem a atmosfera que a cineasta traz para a sua realização. Saltam à vista as belas composições, sobretudo pela forma poética como enquadra a natureza. A cineasta coloca, na estreiteza (do formato clássico) dos planos, a terra calcorreada pelas botas das personagens, ladeadas pelos tons acastanhados e avermelhados das folhagens caducas, assim como os verdes dos musgos e das ervas. É bastante visível uma preocupação pictoralista nos planos, que não se fica por um mero embelezamento das partes, uma vez que estas se integram no todo. Vemos irromper uma beleza paradoxal: toda a natureza representada na sua caducidade, dentro do filme, refloresce. E é neste paradoxo que existe, entre o conteúdo e a forma, entre o representado e a sua representação, entre as coisas que morrem e uma forma capaz de as ressuscitar, um manancial de beleza cinematográfica.
Tenho a impressão de que quando se inicia uma crítica pela forma como o filme nos toca, pelas sensações que ele nos provoca, isso revela já uma certa valorização da obra. Uma crítica que comece, e se mantenha demasiado tempo, num patamar de exploração temática e narrativa, confessa uma certa falta desse toque – talvez seja neste ponto onde a obra se nos mostre na sua alteridade? O cinema moderno começa a adoptar formas estilísticas novas que vêm criar uma ruptura com o cinema narrativo clássico americano. Como David Bordwell, com enorme clareza, analisou, o “cinema de arte” torna-se uma nova prática do cinema, que para o autor se distinguiria, sobretudo, pela procura de realismo, pela ambiguidade de situação e pela expressão autoral. Estes princípios estilísticos pensados por Bordwell levam-me a pensar numa espécie de hibridismo entre o clássico e o moderno que a realizadora conseguiu neste filme. Se pensarmos nesse princípio estilístico moderno da procura de realismo, em “First Cow” ele fica como que quebrado, entre um vislumbre da situação histórica – o território de Oregon, nos inícios do século XIX -, e a forma fílmica que esconde essa realidade, e que a transforma em espaço-qualquer.
No cinema de arte de hoje, é o próprio realismo que se torna ambíguo, ao despir mais a realidade para, em cima dela, colocar uma camada estética que cancela um acesso imediato aos conteúdos representados. A realidade é ainda visível e identificável, mas não na sua nudez. Ao studium já não se contrapõe um punctum – como pensou Barthes. Essa base real já não vive sem um invólucro que se torna a sua pele. Uma pele que já não exige o nosso toque, mas como num corpo vivo qualquer, permanece em si a potência do toque. Não nos estica a mão, deixa-se estar, tal como é, e começa a exigir mais do nosso olhar e do nosso ouvido, em suma, do nosso poder contemplativo. Tudo nos escapa se não estivermos atentos. Isto quer dizer que as temáticas permanecem, mas não tomam o protagonismo que tomavam antes, deixam-se modelar por essa camada formal que perdeu vontade de chegar fora de si; permanece como uma mónada, que em si reflecte o todo, porém, desde o seu próprio ponto de vista. Em suma, a vontade de realismo deu lugar uma libertação estética mais pura, onde o espectador que for capaz de investir fortemente na sua atenção – dada a desaceleração rítmica que é comum nestes filmes -, absorverá uma unidade de sensação, que poderá, posteriormente, ser decomposta em variações temáticas ou morais. Em “First Cow” sentimos já esse apelo à atenção; um ritmo lentificado, que nos pede uma demora. Como se a obra nos comunicasse: “se me deres a tua atenção, talvez sintas aquilo que tenho para te dizer; mas quero que saibas, antes, que não existo apenas para to dizer”.
Há uma psicologia calma nas personagens que ressoa na forma do filme. E é aqui que Reichardt consegue passar-nos um sentido muito concreto de amizade, sem precisar de grandes recursos narrativos. A própria forma vai-nos dando uma espécie de atmosfera idílica que acabamos por partilhar com as personagens. Esse ritmo calmo do filme, traduz-se na voz sussurrada de Cookie, assim como na candura do seu olhar. Esta atmosfera que abraça Cookie e King-Lu faz o contraponto com a algazarra e o frenesim em que vivem as restantes personagens, em constante competição e luta, cada um olhando apenas para si mesmo. Estes dois seres ligam-se por outra razão, por colocarem em comum a aventura, o risco. Sabendo que, por baixo dos projectos, esconde-se uma constante iminência de mudança. Todos os caminhos estão lá, em potência, assim como a presença, sempre iminente, da morte.
A amizade é mais sentida do que explicada. A subtileza estilística é admirável, pela forma como a narrativa é despida de artifícios que promoveriam mais a sua forma espectacular do que a essência da nobreza do sentimento. É certo que muitas questões paralelas à amizade podem ser levantadas, para as explorarmos e interpretarmos. Mas, quando mergulhamos mais profundamente no filme, mais do que mostrar realidades, ele tem o raro poder de nos tocar com a forma como nos mostra duas sensibilidades que se tocam.