“Disponível para Amar”, a inegável pièce de résistance de Wong Kar-Wai, completa 20 anos desde a sua estreia (aclamada) no festival de Cannes. Para os que desconhecem este filme, posso adiantar que é uma história de amor não convencional, contada de uma forma igualmente não convencional: dois vizinhos, Su Li-zhen e Chow Mo-wan, cujos cônjuges têm um caso, recorrem um ao outro para se sentirem menos sós. O que começa como um processo de lidar com a dor de descobrir a traição dos esposos e tentar compreender como terá o caso começado, torna-se, com o passar do tempo, um amor platónico. O argumento, incompleto até ao início das rodagens, dava apenas pistas sobre o decorrer dos eventos, cabendo aos atores Maggie Cheung e Tony Leung, através do improviso, construir estas complexas personagens. E foi assim que o filme se foi construindo e desconstruindo à volta dos protagonistas que, apesar de se terem um ao outro, estão irremediavelmente sós.
A questão da traição é o detonante de toda ação e o realizador podia escolher focar-se no orgulho ferido das personagens ou no confronto entre estas e os esposos, no entanto, optou por representar a concertação de espíritos brandos ao estado de solidão. Tal não significa que Su e Chow aceitem as circunstâncias com que foram confrontados, antes que tornem as palavras de fúria e protesto em silêncio.
Ora, voltando à questão que dá nome a este artigo, o modo como Wong Kar-Wai constrói a solidão em “Disponível para Amar” é sublime, acrescentando algo aos planos para mostrar o que, efetivamente, falta aos protagonistas. Atribuo especial destaque a cinco aspetos que combinados com tal mestria, mostram, de forma quase cirúrgica, como é sentir-se só: os “entre-momentos”, a paleta de cores, enquadramentos-dentro-de-enquadramentos, planos de personagens atrás de grades e, por fim, momentos musicais e leitmotiv.
No que respeita àquilo que designo de “entre-momentos”, estes consistem em atividades banais (que em grande parte dos filmes são mostradas no mínimo) realizadas pelas personagens com o fim de chegar a algum sítio. Por exemplo, antes de existir qualquer diálogo entre os protagonistas, são vários os momentos em que estes se encontram no corredor do prédio onde ambos habitam ou no restaurante onde fazem as suas refeições. Esta repetição de momentos, aparentemente desinteressantes, constrói a monotonia do quotidiano solitário das personagens, sem que palavras sejam necessárias, tornando-se claro que Su e Chow passam grande parte do tempo a aguardar a chegada dos esposos. A compilação destes momentos, cuja velocidade é abrandada, enfatiza também a importância destes instantes na construção das próprias personagens e do modo como se sentem.
Aos “entre-momentos” junta-se a paleta constituída essencialmente por duas cores: vermelho e preto. De facto, quando pensamos em “Disponível para Amar”, é inevitável não nos lembrarmos das cores garridas que acompanham toda a ação. A paleta de cores aprimorada por Christopher Doyle, diretor de fotografia e colaborador frequente de Kar-Wai, assume-se como uma das marcas mais distintivas de toda a filmografia, sendo levada ao extremo neste filme e na sequela “2046”. Ora, se por um lado, o vermelho é uma cor primária, associada ao dinamismo, à vontade de agir e a emoções como a paixão e o desejo, por outro lado, a cor preta, a mais escura de todo o espetro de cores, simboliza solidão, medo e isolamento. São estes os pilares do filme e também os pontos de enlace e desenlace: é o desejo que une os cônjuges dos protagonistas e, até certo ponto, os próprios, e é a solidão a consequência desse desejo. Estas duas cores não se apresentam de forma estanque, sendo que em múltiplos planos as duas coexistem e mostram a dualidade desta vontade de amar. Um dos planos mais estilizados do filme, quer a nível da paleta de cores, quer da iluminação, dá-se quando as duas personagens se encontram no quarto de hotel e sem trocarem qualquer palavra, olham para o exterior através de uma janela. Neste momento, vermelho e preto são as cores predominantes, no entanto, uma nova cor aparece refletida no rosto das personagens: o amarelo, cor representativa da alegria, otimismo e associada ao próprio sol, como se os protagonistas estivessem a olhar para a possibilidade de serem felizes, ou, pelo menos de se sentirem menos sozinhos, novamente.
Figura 1 – O amarelo refletido nos rostos de Su Li-Zhen e Chow Mo-wan |
O enquadramento dentro de enquadramento (frame-within-a-frame) consiste numa técnica de composição fotográfica que se serve de um segundo enquadramento, para além do da própria câmara. Este enquadramento permite uma composição visual equilibrada e é também uma forma de dirigir o olhar do espectador para onde se pretenda que ele esteja. O duplo enquadramento acrescenta profundidade e textura à imagem, permitindo igualmente acrescentar densidade emocional. Em “Disponível para Amar”, esta técnica é usada de forma quase obsessiva (os seis minutos iniciais do filme são compostos exclusivamente por planos de enquadramento duplo) para enfatizar o isolamento de Su e Chow e o seu aprisionamento a este estado. Mesmo quando estão acompanhados, os protagonistas sentem-se sós e esta limitação emocional é concretizada através dos limites do segundo enquadramento. Uma vez que este enquadramento nos direciona o olhar, neste caso, para as personagens, a relação que o espectador estabelece com estas é muito mais próxima e afetiva do que em outros filmes. Aqui, o foco são unicamente os protagonistas e o seu mundo interior. Ao refletir sobre esta opção estilística é possível concluir que poderá tratar-se igualmente de um statement relativo ao aprisionamento dos protagonistas às convenções sociais, uma das razões pelas quais o par não assume a sua relação romântica. Efetivamente, Su Li-zhen e Chow Mo-wan estavam constrangidos pelas normas da sociedade, uma vez que o divórcio (nos anos 60) não era uma prática bem aceite, sobretudo, se fosse essa a vontade da mulher.
Figura 2- O isolamento das personagens |
Não tão presentes como o duplo enquadramento, mas igualmente fundamentais para a compreensão da estética da solidão, estão os planos dos protagonistas atrás de grades. Este tipo de planos evidencia, de forma clara, pela sua natureza, a clausura e aprisionamento a um estado. Este aprisionamento pode-se referir à solidão, normas sociais ou a um casamento onde não existe amor. Ocorre em momentos-chave da ação, regra geral, quando o par teoriza sobre quem terá começado o caso ou quando falam dos cônjuges.
Por fim, Wong Kar-Wai serve-se da componente musical através do uso de leitmotiv (frase musical, não muito longa, associada a uma ideia ou personagem), acompanhado de uma sequência musical, sem falas. Neste caso, o leitmotiv trata-se do tema “Yumeji’s Theme”, composto por Shigeru Umebayashi. Esta composição anuncia a presença de Su ou Chow na cena e é, geralmente, acompanhado por uma sequência de imagens, em câmara lenta, do par a conversar ou a encontrar-se. O tema é usado de igual modo em cenas em que os protagonistas estão sozinhos e reflexivos. Esta dualidade no uso da composição musical, quer em momentos individuais, quer de conjunto, demarca a ideia de que os protagonistas estão perpetuamente sozinhos.
Termino esta reflexão como comecei: tecendo elogios ao estilo de Wong Kar-Wai, que conseguiu criar uma obra-prima intemporal cuja aparente falta de narrativa é substituída pela componente visual, chegando onde as palavras não conseguem. “Disponível para Amar” constitui uma verdadeira experiência estética que o espectador não conseguirá esquecer tão cedo.