Um dos filmes imperdíveis da edição 2020 do IndieLisboa é o premiado “A Febre”, da cineasta e artista visual brasileira Maya Da-Rin. A primeira longa-metragem de ficção da realizadora está na Competição Internacional e tem duas sessões: na quinta (27), às 19h30, no Cinema Ideal, e no domingo (30), às 21h45, na Culturgest.
“A Febre” tem como protagonista Justino (interpretado por Regis Myrupu, reconhecido como melhor ator nos festivais de Locarno e Brasília). Justino é um indígena de 45 anos do povo Desana, viúvo, dois filhos e vigilante no porto de Manaus, capital do Amazonas. Sua filha Vanessa (Rosa Peixoto), que mora com ele, é técnica de enfermagem e trabalha num posto de saúde. Quando ela conta ao pai que foi aceita na faculdade de Medicina da Universidade de Brasília, Justino começa a ter febres recorrentes que a medicina não-indígena não consegue diagnosticar.
Cercado pelos enormes contêineres de metal no porto, Justino não se identifica com seu ambiente de trabalho. Para um homem que passou boa parte da vida a se sustentar pela floresta, é deprimente estar neste espaço. Sua casa, o ambiente doméstico, é o único lugar em que ele se sente à vontade. Nela, ele fala tukano, língua comum às tribos da região do Alto Rio Negro, em vez do português. Em sua casa, ele pode contar suas crenças e tradições para o neto durante o jantar. Após Vanessa anunciar a mudança para Brasília, parece que Justino também sente a perda do conforto do lar e cai numa escuridão densa. Uma nostalgia da mata o atinge e ele chega a se definir como um “caçador sem presa”. Essa é a forma como ele lida com a partida da filha.
Ao mesmo tempo, Justino passa por um conflito interno. Muitas famílias indígenas tiveram que deixar o território tradicional para viverem na cidade. Então Justino ouve do novo colega de trabalho (um homem branco) que na fazenda em que ele trabalhava antes “lá tem muito índio, sabe, índio de verdade” e que agora é tudo “índio amansado”. Porém, Justino também é criticado pelo irmão de estar cada vez mais a viver a lógica do mundo branco. “Virou branco de vez”, diz seu irmão, na ocasião em que vai visitá-lo e o convida para voltar a passar uns dias na floresta. Esse tipo de perturbação e de vazio são alguns sentimentos que estavam adormecidos até então.
Portanto, Maya Da-Rin faz um retrato raro no cinema de pai e filha indígenas e de sociedades complexas contemporâneas. Ela já disse em entrevistas que “A Febre” é uma produção colaborativa no sentido de que sua experiência com os povos indígenas enquanto trabalhava em documentários na fronteira de Brasil, Colômbia e Peru (“Terras”, de 2009, e “Margem”, de 2007) foi essencial. É um trabalho que se aproxima de obras como “Los Silencios”, de Beatriz Seigner, e “Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos”, de Renée Nader Messora e João Salaviza. Amplificar esses dilemas do quotidiano indígena, contratá-los como actores e protagonistas de suas histórias, faz de “A Febre” um filme muito importante ainda mais no contexto político brasileiro.