Adaptar Elena Ferrante não pode ser tarefa fácil, embora as adaptações tendam lentamente a surgir, muito a par tanto com o fascínio que a figura enigmática da escritora sugere no imaginário actual, como porque as suas histórias são épicos apaixonantes.
Embora as obras de Ferrante não sejam, claro, decalcadas umas das outras, muitos são os temas visivelmente comuns e a que a escritora recorrentemente retorna e revisita. “A Filha Perdida” não é uma das obras que fazem parte do catálogo de leitura da autora destas linhas, mas a identificação com aquele magnetismo único das suas personagens é quase imediato.
Isso é dizer muito sobre a adaptação de Maggie Gyllenhaal e é muito possível que tenha definido dramaticamente o sentido que este texto toma, já que este “A Filha Perdida” do cinema não aparece sem defeitos, mesmo não se conhecendo a obra de base.
Por um lado, desvirtua-se a latinidade inerente e trágica da obra da autora com a adaptação dos personagens a uma realidade geográfica que choca directamente com o próprio desenrolar da história – e a geografia em Elena Ferrante é marcante.
Por outro lado, consegue-se na perfeição aquela sensação ameaçadora da constante espada de Dâmocles sobre a cabeça dos intervenientes que tanto caracteriza a autora, mesmo quando apenas a vida quotidiana parece desenrolar-se placidamente.
A violência com que Elena Ferrante desenha os seus personagens e, claro, as suas mulheres, torna o âmago das suas histórias profundamente angustiante, mesmo quando trata, por exemplo, de um inocente amor adolescente, que nunca parece inocente.
A ameaça em “A Filha Perdida” de Maggie Gyllenhaal encontra-se por todo o lado, como se não pudesse haver resgate possível para as amarguras de um passado que teima em impor-se, até neste período de férias que deveria ser leve e prazeroso.
Leda, a personagem principal, é uma mulher de meia-idade que passa férias numa ilha grega, casualmente, sozinha. Encontrará ali uma série de outros intervenientes totalmente opostos a si e à sua cultura, enquanto professora universitária.
A ameaça prontifica-se a aparecer personificada na família que tudo sugere ser da Máfia italiana e prosseguirá a corroer o interior de todos quantos possuem ainda uma réstia de consciência.
De fora para dentro, Leda vai confrontar-se com tudo aquilo que arrumou num canto desconfortável e esquecido da sua memória, desde a relação que manteve com a maternidade até ao relacionamento conflituoso com a própria mãe.
As mulheres de Ferrante são aqui retratadas de forma fidelíssima, ainda que o breve desencontro geográfico que transforma a costa italiana na ilha grega e a família mafiosa italiana na família mafiosa de Queens, possa desvirtuar um pouco a forma como o espectador olha para a história.
Ultrapassado esse facto incontornável e que torna desagradável a experiência do filme mesmo para quem não tenha lido o livro, Maggie Gyllenhaal na realidade consegue criar os seus próprios monstros sem nunca deixar de respeitar o espírito que caracteriza a obra de Ferrante.
Mulheres dramáticas, misteriosas, trágicas, cheias de segredos e mágoas que carregam de forma tão pesada que lhes verga a postura, o olhar, marca-lhes em profundidade o sorriso de culpa por um possível rasgo de felicidade.
Mulheres que carregam até nos seus próprios nomes a inevitabilidade dessa tragédia inescapável, que sabem qual é o seu fim, mas estarão elas prontas para escapar ao destino?
Ligam Leda e a filha de Nina, a jovem mãe interpretada por Dakota Johnson, Elena, muito mais do que apenas uma história feliz em que Leda encontra a menina na praia, depois de todos a pensarem perdida.
Leda é a mulher que na mitologia grega gera com Zeus uma prole ilegítima onde se inclui Helena de Tróia, e, por isso, o seu encontro vai muito para lá do fortuito, antes uma união inevitável, escrita na orla do destino.
Em “A Filha Perdida”, essa união intensifica-se com a descoberta da boneca de Elena, que a Leda tanto faz lembrar a sua boneca de infância Mina, ao ponto de a roubar e fingir o seu desaparecimento para ficar com ela.
A boneca Mina entrelaça-se com Nina, mas não apenas nas semelhanças do nome, há uma identificação com o imenso aborrecimento ou arrependimento de Nina pela vida que leva, pelo marido, pelo erro de ter sido mãe, por se encontrar exausta.
“A Filha Perdida” é quase um caso de estudo freudiano e estas conexões entre o passado de Leda e o presente de Nina, vão trazer à superfície o inelutável desencadeamento de acontecimentos trágicos e libertadores que vão quebrar definitivamente os grilhões do passado.
Leda e Nina são duas e uma só, isso explica em parte o imediato fascínio enigmático que nutrem uma pela outra, e esse olhar no espelho vai trazer de volta a Leda todos os momentos da sua vida enquanto mãe, mas sobretudo enquanto filha, que não pôde confrontar antes.
Perdida de amores pela boneca de Elena, ainda tentará compor-lhe o exterior, limpá-la, vesti-la com roupas novas, mas acabará por perceber que do seu interior jorram todo o tipo de horrores nauseabundos.
Leda perde-se num emaranhado de memórias dolorosas de uma vida adulta difícil de confrontar, pelo seu papel inesperado de mãe que abandona, mas também de uma filha que é abandonada e maltratada, numa espiral de mães e filhas cujo trilho se pode seguir até à mãe original, a Eva.
Leda é, ao mesmo tempo, o incómodo elemento externo que não se coaduna com o carácter de alcateia da família de Nina, e uma atração natural pelo perigo que representa afrontar o poder do grupo.
Leda pagará bem cara essa afronta, mas esse também será o caminho certo, ainda que doloroso para se aproximar de novo das suas filhas, que julgava perdidas e irrecuperáveis.
A presença da família de Queens, no final assemelhar-se-á apenas a um mero pretexto para que Leda expurgue os seus pecados, ficando no ar a pergunta: será que existiram na realidade ou foram produto da imaginação?
“A Filha Perdida” é uma belíssima estreia de Maggie Gyllenhaal na realização, mesmo tendo em conta que a adaptação não está isenta de pequenos pecados visíveis, facilmente perdoáveis para quem consegue captar na perfeição o espírito das mulheres de Ferrante.
O filme consegue nunca perder esse sentimento de destino fatal, angustiante, tenso, secreto e captar esse espírito faz dele perfeito em captar a essência de Elena Ferrante.
Os momentos menos bem conseguidos na escrita da história ou algumas falhas na sua coerência são amplamente compensados com um conjunto de interpretações primorosas, das quais se destaca Jessie Buckley, que interpreta a personagem de Leda enquanto jovem, mas tanto Olivia Colman, como Dakota Johnson ou a sempre apaixonante Dagmara Dominczyk, fazem esquecer alguns acidentes de percurso.
Por último, é importante não esquecer quão importantes são as histórias em que as mulheres se resgatam como protagonistas do seu destino, sem depender de outros poderes para tal.
O que Maggie Gyllenhaal consegue trazer para primeiro plano é não só uma geração renovada de mulheres cineastas que têm agora mais espaço para as suas criações, mas que também são ouvidas e levadas a sério.
Acresce a isso ainda o pegar em histórias em que as mulheres podem reconhecer as suas vozes e experiências porque a perspectiva é só e apenas de vozes intervenientes femininas e contar histórias desta perspectiva só pode pertencer às mulheres.