A inaceitável injustiça audiovisual e a sua prorrogação por parte do estado

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Em janeiro o governo considerou “completamente deslocada” da diretiva europeia para o audiovisual a proposta de aditamento à lei do cinema e audiovisual sobre o alargamento do pagamento de taxas a plataformas de streaming. Seis meses depois, aparentemente, quem está completamente deslocado da diretiva europeia é mesmo o governo.

No início deste ano, enquanto decorriam as atividades parlamentares acerca do Orçamento de Estado de 2020, foi apresentada uma proposta de aditamento à lei do cinema e audiovisual pelo Grupo Parlamentar do Bloco de Esquerda que visava alargar o pagamento da taxa paga pelos operadores de televisão por cliente a todos os serviços fornecedores de conteúdos audiovisuais, abrangendo assim também plataformas de streaming/VOD.

Atualmente, a verba da cobrança da taxa do cinema e audiovisual reverte para o financiamento público da produção de cinema, através do Instituto do Cinema e do Audiovisual. Essa taxa seria assim também aplicada a operadores como por exemplo, a Netflix, por via da inclusão das empresas donas dessas plataformas na lista de cobranças sobre cada subscrição, fechando assim uma lacuna legislativa. Essa mesma proposta apesar de ser apoiada por responsáveis da OCDE, foi rejeitada em Parlamento, contando apenas com votos a favor do PCP e BE.

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Numa das audições à ministra da Cultura, Graça Fonseca, o secretário de Estado do Cinema, Audiovisual e Media, Nuno Artur Silva, respondeu aos deputados da Comissão de Cultura e Comunicação afirmando que, apesar de compreender a iniciativa bloquista, não faria sentido avançar com a medida tendo em conta que existiria uma diretiva europeia com uma amplitude maior nesse sentido e que a transposição dessa mesmo iria ser realizada até setembro. Argumentou ainda que o governo não iria compactuar com “medidas avulsas” e que preferia observar as exigências da diretiva europeia e trabalhar na apresentação de um conjunto global de medidas para todo o setor do audiovisual e cinema.

A diretiva europeia em causa foi aprovada em 2018 pelo Parlamento Europeu, com o objetivo de regulamentar, entre os Estados-membros, a atividade dos serviços de televisão e dos serviços audiovisuais a pedido, e que, em Portugal, obrigará a uma alteração tanto na Lei da Televisão como na Lei do Cinema e do Audiovisual.

Cerca de seis meses depois destes acontecimentos, a proposta de lei do Governo sobre esta transposição foi aprovada a 25 de junho, em Conselho de Ministros, e chegou a debate na generalidade ao Parlamento no dia 9 de julho.

Este mesmo foi convocado em forma de “relâmpago”. Vários grupos parlamentares realizaram críticas à rapidez da sua convocação, referindo que era grave a falta de consulta pública deste projeto de lei, e mais grave ainda a falta de audição dos vários representantes do setor.

Como se esses problemas já não fossem grandes o suficiente, o projeto de lei do governo prevê apenas a extensão às plataformas das taxas sobre publicidade comercial, parecendo  esquecer se completamente de que não há publicidade comercial em nenhuma das plataformas de streaming atualmente presentes em Portugal.

As boas intenções do governo foram então, aparentemente, apenas palavras. A justificação de não suportar medidas avulsas ou de estar à espera da diretiva europeia cai completamente quando a tão aguardada transposição acaba por não ir em sentido positivo à tributação dessas plataformas.

Em agosto de 2019, de acordo com o Barómetro de Telecomunicações da Marktest, existiam 1,5 milhões de portugueses subscritos a estes serviços. Não é aceitável que estas empresas continuem a escapar a pagamentos fiscais devido a erros legislativos. 

Num país tão deficitário no que toca ao investimento da produção audiovisual nacional como o nosso, não seria só útil como deveria ser obrigatória a inclusão destes serviços à cobrança da taxa do cinema e audiovisual de modo a, então, aumentar os fundos disponíveis para os incentivos públicos a estas áreas. 

Existem casos positivos de implementações de medidas similares em vários países europeus. Por exemplo, na Alemanha quando estes serviços audiovisuais faturam até 20 milhões de euros terão de pagar 1,8% dessas receitas ao Filmförderungsanstalt​, o equivalente ao ICA alemão. Plataformas com lucros acima dos 20 milhões pagarão até 2,5%, estando isentas plataformas com receitas abaixo dos 500 mil euros. Na Polónia, as plataformas pagarão 1,5% sobre os seus lucros diretamente ao Instituto do Cinema Polaco.

Em França está ainda proposto que plataformas como a Netflix paguem 5.15% das suas receitas ao Centre National du Cinéma, que financia produção cinematográfica no país. Além dessa contribuição, a obrigação de investimento direto oscilou entre 16 a 25% daquelas receitas. 

A transposição da diretiva seguirá então agora para o debate na especialidade. A manter-se sem alterações, não será possível aumentar os recursos públicos para investimento do cinema português. Ao isentar essas multinacionais das imposições previstas na lei, o Instituto do Cinema e Audiovisual é excluído da contribuição das empresas com maior crescimento no setor, estagnando a produção de cinema em Portugal face à dinâmica que estas plataformas proporcionaram no plano internacional. 

Até à decisão final, devemos lutar para as mudanças necessárias sejam realizadas a esta proposta, de modo a não perdermos uma oportunidade tão única como esta de uma maior captação de fundos monetários, com um objetivo tão positivo que é, apoiar as produções audiovisuais nacionais. 

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