Desci a rua, avulso em passos de caracol, perdido nos meus devaneios. Não me lembro se debaixo de um sol escaldante, abafado por uma tímida neblina, ou de flocos de neve que me aclaravam os cabelos. A minha pequena travessia, dissecada por uma câmara panorâmica, passou por uma loja de conveniência, diante da qual se estendia uma fila de rostos sorumbáticos desejosa para dar continuidade ao vício em nicotina. A paleta de cores daquela rua é-me, agora, incerta. Tanto podia abraçar as raízes vívidas de uma tarde bem-humorada, pejada de aromas e sons salpicados, como desfalecer para tons monocromáticos, puxando por uma melancolia que se instalara sem motivo conhecido.
Após me abastecer, retomei o caminho. Tínhamos definido um restaurante/bar como ponto de encontro, ao virar da esquina. A parca escadaria era sucedida por uma porta de vidro, com autocolantes coloridos estampados e coberta por uma daquelas cortinas de fios encaracolados de plástico transparente, a fim de evitar a entrada de moscas. Ele estava à minha espera.
Encostado à ombreira, parecia à deriva de um raciocínio descomprometido, ocupando o meu atraso com um cigarro. À exceção do bigode, mantinha a face livre de desleixo. Apresentava um aspeto bastante diferente daquele que recordava. Quando o vira, anos antes, estava bem mais magro, as maçãs do rosto afiadas, com o cabelo liso despenteado, escovado para trás. Demasiado largas, as calças eram amparadas pelo cinto preso no limite, a camisa entalada e dobrada nas mangas, um pouco vincada, prestes a engolir-lhe o tronco. Tinha um ar abatido, cansado, como se a vida lhe fosse madrasta.
Notei, então, as suas bochechas mais saudáveis, redondas. Tinha o cabelo rapado e, apesar de colecionar mais grisalhos, tinha um ar jovial, o corpo ligeiramente robusto. Principiava um sorriso jocoso, quase tolo, que me contagiou com facilidade.
Aproximei-me e disse “Boa tarde”. Reciprocou num tom de voz profundo e pausado. O seu inglês, apesar de imperfeito, era funcional e, sem dúvida, superior ao meu, atropelado por deslizes a que o meu nervosismo me subjuga. Bom português que sou, antes da típica conversa de circunstância, tentei estender-me para um aperto de mão e, se não fosse intrusivo, um abraço. Deu um passo atrás e limitou-se a inclinar o corpo, baixando a cabeça, num aceno de respeito. Embora o meu constrangimento tenha sido exacerbado, não interpretei a atitude como pudor ou presunção. Assim as nossas culturas nos fizeram. Aproveitei para desbloquear o gelo: toquei exatamente nesse assunto.
Entusiasmado, mencionei “Night and Day” (2008), um filme que deveria ser mais acarinhado, uma história que me ensinou sobre o peso da disparidade cultural na tomada de decisões do indivíduo deslocado – um professor sul-coreano vê-se obrigado a fugir para Paris após cometer um delito na universidade. Não tomou a boleia dos meus elogios. Contou-me que sempre gostou de viajar, principalmente pela Europa, e das suas pessoas, dos lugares, dos pratos, dos cheiros, do cinema.
Acendi um cigarro para lhe fazer companhia. O estabelecimento estava a meio gás, fora de horas: tarde para almoçar e cedo para jantar. Trocou um breve aceno e, no idioma para mim interdito, meia dúzia de palavras com o empregado, encostado ao balcão, de avental e as mãos pousadas sobre a cintura. Este dirigiu-se à cozinha.
Com tanta escolha, optou por uma mesa num dos cantos. Sentámo-nos e acendemos mais um cigarro. Pouco depois, comíamos frango frito com as mãos e bebíamos licor de arroz. Não foi a primeira vez que me sujeitei às preferências gastronómicas dele.
Apesar dos distantes berços, partilhámos o sentido de humor. Tentei, repetidamente, arrancar uma gargalhada genuína, ocultada pela sua reserva. Oferecia um sorriso desajeitado, os olhos semicerrados e um coçar de cabeça, volta e meia ajustando os óculos de finos aros metálicos. Regozijava-se com histórias sobre o comportamento humano mais desengonçado, minando o lado engraçado em situações constrangedoras, astúcia das mentes observadoras. Eu insistia em falar sobre cinema: o seu. Tenho a certeza de que ele não tinha tanto interesse no tópico.
Hong teria sempre algo valioso a ensinar. Disse-me que aquele encontro o lembrava de um filme que havia feito há mais de dez anos. Muito lisonjeado fiquei quando mencionou “HaHaHa” (2010), em que dois amigos se reencontram para almoçar e partilhar relatos das últimas férias. A estrutura narrativa, aliás, é bastante engraçada. A primeira linha é composta pela faixa sonora do diálogo dos amigos, subposta à sucessão de fotografias a preto-e-branco, destes a conversar, comer, beber e fumar. A segunda oferece o cinema sang-sooiano como o conhecemos. Os protagonistas vivem absolutamente ignorantes do facto de terem passado férias no mesmo local ao mesmo tempo e mantido uma relação com a mesma rapariga. Triângulos amorosos não ficam melhores.
“É um dos seus filmes mais engraçados”, comentei. Para quem se aventurar numa maratona de Hong Sang-soo, “HaHaHa” consegue ser uma leva de ar fresco, após tantos títulos de um assunto, aparentemente, inesgotável: a condição humana, o consolo e o embate entre homens e mulheres, onde as caricaturas depressa deixam de o ser, para dar palco a confissões, fragilidades e mesquinhices universais, em todo o corpo, em toda a cultura.
Um dos ingredientes mais belos do cinema de Hong Sang-soo é a entrega dos pensamentos mais retorcidos das personagens, encarnadas por atores recorrentes, suspeitos dos costume, quais prediletas peças de xadrez. Por longos planos-sequência, quase estáticos, a fotografia sóbria proporciona uma visão microscópica do ser humano em convivência, extraindo o seu lado mais primitivo. Não gosta de cortes, dispensa artifícios, entende que embelezamentos cinematográficos obstruirão a procura incessante por uma “realidade”. Tarefas ambiciosas, cumpridas numa magnífica simplicidade, ao alcance de poucos contadores de histórias.
Apercebi-me, então, da minha rara oportunidade. Depois de ele molhar o bico e sacudir as cinzas do cigarro, enchi o peito de ar e atrevi-me.
“Quanto é que mete de si nos filmes que faz?”
A timidez deu lugar a uma reação demorada e inexpressiva. Senti uma apreensão a tomar conta de mim, quase tapando a mão com a boca, gesto infantil de quem se arrepende da estupidez que acabou de dizer. Das duas, uma: ou havia ficado desconfortável, por não ter uma resposta; ou ofendido, por considerar que eu me tinha excedido, que tinha ultrapassado um limite. Já tínhamos esvaziado três garrafas. Os maços iam a metade. Ao contrário do que me expectei – eu conheço os desfechos dos seus filmes –, não indicou um impulso de desavença. Suspirou, olhou para o lado, fumou e, sem desvio ocular, sem levantar a voz, obrigou-me a reconhecer, pela primeira vez, algo sobre mim. Teria de ser muito ingénuo ou estúpido para deixar que isto me passasse ao lado.
“Porque é que me imitas?”
Não fingi espanto. No espaço de milissegundos, o meu íntimo reconheceu aonde ele queria chegar. Afinal, porque é que o imitava? Porque é que analisava os seus filmes com o novato intuito de fazer do seu cinema o meu, sem que ninguém reparasse? Porque é que professava uma inteligência a anos-luz da verdadeira? À falta de uma resposta esclarecida, madura, mencionei “The Day He Arrives” (2011), um dos meus preferidos.
“Lembra-se do primeiro ato?”
“Já fiz muitos filmes, tens de me relembrar.”
“De volta à terra-natal, o protagonista é abordado por três estudantes, fãs do seu trabalho. Após saírem do restaurante, de uma noite agradável, enfurece-se profundamente ao reparar que os rapazes saem de uma loja de conveniência, cada um com um maço por desembalar, imitando-lhe a pose. O realizador repreende-os – “Por que raio é que me estão a imitar?!” – e afasta-se a sete pés.”
“Estou a ver. O que tem?”
“Eu sou um desses estudantes.”
A demora em retorquir terminou com um sorriso suave, resignado perante o idiota, que dá o braço a torcer para descontinuar o desconforto para ambas as partes. Talvez tenha apreciado a minha sinceridade.
“É um filme divertido, não é?”, perguntou.
Acenou para o empregado, que trouxe mais garrafas. A partir daí, a conversa evoluiu pela mão dele. Sem objeção da minha parte – que inconveniente seria –, monopolizou-a, como se uma súbita faísca se tivesse apoderado do seu espírito.
“Sabes, percebi cedo que não me iria adaptar muito bem ao método de uma escola de cinema. O mais irónico é, em simultâneo, ser professor e fazer os meus filmes, com os recursos que consigo arrecadar. Felizmente, não preciso de muito tempo, em comparação com outras produções do meu país. É raro precisar de mais de três semanas para a rodagem.”
No fértil começo da minha licenciatura, admito que não me inteirei da sua filmografia por ordem cronológica. À luz do que sei hoje, os dois primeiros títulos, “The Day a Pig Fell into the Well” (1996) e “The Power of Kangwon Province” (1998), sabem a pouco. Pressente-se um jovem, quase desesperado, em busca de um registo particular, ao longo de enredos parcos.
Mas as sementes haveriam de florescer em verdes saudáveis. Seguiu-se “Virgin Stripped Bare by Her Bachelors” (2000), a primeira pedrada no charco. Nunca mais falaria doutra coisa senão do homem e da mulher, o primata e a musa, um fado saltitante entre ficção e vida real.
Começou por testar a realidade, com histórias com infinitas interpretações, alternativas de uma decisão, uma palavra, um gesto. um olhar, um silêncio. Talvez tenha sido, então, com “On the Occasion of Remembering the Turning Gate” (2002) que encontrou, definitivamente, a sua marca, as suas variações de aperitivos fílmicos a que nos habituaria: uma câmara que lambe as ruas e as personagens sequestradas em cafés, restaurantes, parques lotados ou despovoados, inundados por chuva, flocos de neve, vento ou raios de sol.
“Deviam ser umas quatro da manhã e, apesar do cansaço, não conseguia pregar olho. Não parava de dar voltas na cama, de pensar no desastre que seria o dia de rodagem seguinte. Gosto de escrever, de preparar, mas tenho o péssimo hábito de deixar tudo para a última. Na minha primeira longa, escrevi em conjunto. Jurei para nunca mais. O meu trabalho complicou-se desde aí. Normalmente, escolho o décor primeiro. Só depois é que vêm a histórias, as personagens e, claro, os diálogos. Sentia-me preso à fórmula, mais desamparado do que seguro. Nessa madrugada, decidi rasgar tudo o que tinha e comecei, simplesmente, a escrever o que me vinha à cabeça, sem grande senso crítico, o bicho-papão de todas as noites. Nunca acho que os meus filmes hão de ficar grande coisa. Tento não pensar muito nisso, o meu esforço recai na atenção a dar aos atores, para que tenham uma experiência positiva. É mais frequente ficar impressionado quando chego à montagem, quando reparo que, afinal, o produto aguenta-se. No dia seguinte, então, levei um molho de manuscritos para o plateau. Ficaram estupefactos, num misto de pânico e injustiça, após uma noite a decorar falas que eu lhes tinha dado, coitados. Na meia hora que demorou a preparar cada plano, ensaiámos o melhor que conseguimos. Eu tinha de ser compreensivo. Se conseguissem passar as ideias principais da cena, usando as próprias palavras quando necessário, eu dar-me-ia por satisfeito. Sempre tive consciência de que a maior parte do cinema que eu quero fazer depende dos atores. O mérito deles é imenso. O dia terminou bem, para minha surpresa. Tudo fluiu com naturalidade. Nunca mais escrevi doutra maneira.”
Parecia uma entrevista. Esqueci-me de que era um homem de carne e osso que se sentava à minha frente. O olhar dele distanciou-se, outrora recíproco, procurou repouso após tantas palavras lhe saírem ininterruptas. Puxou um longo travo do cigarro e assim ficou. Os meus olhos permaneceram no seu semblante carregado, o pesar desvanecendo, aproximando-se da ternura com que começara. Anestesiado por uma misteriosa admiração, procurava sentido no que me tinha acabado de dizer. Achei impensável que alguns dos momentos mais marcantes do cinema sul-coreano, que construíram a minha íntima relação com a sétima arte, fossem produto do acaso, de um improviso, do desenrasque de um autor acagaçado, de uma insónia.
Curvou-se e encheu os copos. Esperou por mim, ingénuo estudante com borbulhas na cara, sobrepostas por uma barba mal semeada. Quando se apercebeu de que o meu discurso demoraria a retomar, especado e com cara de parvo, soltou uma frase que eu soube, de imediato, que me ficaria tatuada no cérebro.
“Faço filmes sobre mim próprio, porque é o único assunto que conheço.”
Tornaria a ouvi-la em “Like You Know It All” (2009). Recuperei a postura. Brindámos.
“Obrigado pelos filmes, obrigado por me ensinar a rir de mim próprio. Obrigado por ter aparecido na altura certa da minha vida. Obrigado pela felicidade que me proporcionou.”
Corado, desviou o olhar. Eu desejei que aquele momento, estendido numa vaga dormência, jamais cessasse. Recordei a primeira vez que vi “Woman is the Future of Man” (2004), na Cinemateca Portuguesa. Meses depois, com a chegada da pandemia, o seu cinema haveria de se tornar uma companhia ainda melhor.
Foi estranhíssimo e nunca se repetiu. Na avalanche cinéfila em que eu e os meus colegas baloiçámos, perante o mísero conhecimento acerca deste enigmático cavalheiro sul-coreano, o filme revelou-se magnífico. No conforto do meu assento, sorri, gargalhei, senti vergonha alheia, desprezo e tristeza pelas personagens. Enfim, chegámos à espetacular (e última) cena num restaurante, uma das dezenas de mesas que Hong Sang-soo filmou, onde se senta um professor ofendido com a imodéstia intelectual de um aluno.
“Achas-te elegante com as tuas ideias emprestadas? Tens lido muito? Os livros que tu lês são os restos dos mortos. São a sua autojustificação, a sua autopromoção! Pelo menos, fala quando souberes do que estás a falar! O que é que tu sabes? O que é que nós sabemos? Do que é que nós temos a certeza? Foda-se, porque é que te armas em esperto? Admite logo que não sabes nada, caralho!”
Conforme cuspia as palavras com uma severidade hipnotizante, saí do meu corpo. Não com o sensor altivo do costume, que me olha de cima para baixo e me desfaz num feroz juízo, mas como se fosse um balão de ar quente, sem arranque nem aterragem premeditada, num voo letárgico que embaciou o meu arredor, as cabeças desconhecidas, os meus colegas sentados a meu lado. Invadidas pela projeção, as paredes da sala Félix M. Ribeiro foram abalroadas por uma honestidade que não se encontra todos os dias.
Começava a esfriar. Acompanhou-me até onde estava hospedado. As ruas dispunham de um manto de ataraxia contagiante. Desde que nos levantámos – ele foi rápido a dirigir-se ao balcão e pagar a conta antes de eu sequer ir com a mão ao bolso –, a inconstância da conversa, que viajara ora por frenesim, ora por um gelo por quebrar, adotou, finalmente, uma estabilidade, um fio condutor, em direção não sei ao certo a quê. Somente sabia que me era, agora, mais confortável um compasso medido entre cada palavra, entre uma pergunta e uma resposta, um comentário e o contraditório. Contentei-me com o silêncio que, de vez em quando, era interrompido por uma nova ideia. Quando chegámos ao meu motel, fitei-o e despedi-me. Ele tocou-me no braço, distanciando-se de seguida. A breve caminhada, para sossegar o estômago e recuperar o domínio das pernas, ajudou-me a entender que aquele rosto não augurava qualquer indisposição, mas antes um mecanismo versado a poupar outrem do alvoroço estacionado naquela cabeça.
Na hora de escutar lamentos, contos de amor e desamor, arranques ou bloqueios artísticos, Hong Sang-soo mostra-se disponível, com as variações a que cada encontro tem direito. Divida-se mais mesas com ele.