A ficção da memória. O filme feito e dado como uma reficcionalização das imagens-memória, uma reinvenção dos momentos retidos, uma reconjugação das vozes passadas e a recoleção do que nunca ficou perdido, antes necessariamente guardado, e que se traz à tona para ser incrustado como a metamorfose e inscrição dos corpos num tempo histórico específico e como o tecer graduado de uma ampla memória familiar e social.
A singularidade de um desejo e de uma homenagem, de um recortar temporal e memorial que se partilha, ultrapassa, em muito, a lógica do mero fabular. Essa outra fabulação de que este filme fala é bem mais íntima, é bem mais centrada no plasmar e no registar imagético despojado. Se as memórias são as de Catarina Vasconcelos e se o filme que delas se faz é para ser dado ao seus avós e para os fazer falar de novo, então ele é o mais pessoal dos filmes. E é também um ato de coragem, o de deixar que todos os desconhecidos possam saber o que de uma só família foi e que agora se faz, como um filme, de muitos e tantos outros – o que quase parece uma invasão desse íntimo familiar – e que é dado como uma dádiva desprendida e generosa de uma cineasta que tanto dá a ver dessas suas memórias dos seus entes mais queridos.
Enquanto forma de cinema, poucos serão os filmes que tomarão a estrutura deste: ele é linear no seu contar, mas poético no seu fluir imagético. Narra, com certeza, as vozes contam-nos partes e dias, lêem-nos cartas, relembram linhas e decisões de vida, mas fá-lo pela lógica da cena- plano, da imagem que evoca as materialidades de outros tempos, o anti- tecnológico e o analógico, o velho brincar, as caixas das marcas de outrora, o colecionismo dos objetos significativos. Essas cenas-plano são bem as cenas- recordação e os planos-vida feitos como imagens atualizadas das imagens- virtualidade de memórias entrelaçadas das gerações e das suas coisas, físicas e simbólicas, e que urgia trazer para o crepitar do grão, também ele analógico, e para o quadrado mais antigo e centrado do que aquele que se vê no moderno e contemporâneo digital. Mais longe disso, do numérico da contemporaneidade rápida e sem memória possível, não poderia andar este filme: não há nele a voracidade – poderá talvez haver uma ligação entre memórias que possa fazer lembrar uma hiperligação, assim também funciona o relembrar das coisas – mas sim a passagem limpa entre quadros de vivência e respiro, há pinturas-memória e uma imaginação que relembra, há a postura de uma imagética que se quer vincar pelo assento da sua figuração e da sua visualidade contra-digital.
Dessas cenas-recordação e dessas planos-vida, retêm-se as imagens que interessaram a Catarina Vasconcelos filmar: o irmão que está, por duas vezes, com a cara tapada pelas folhas, uma quando mais novo e uma outra quando mais velho, a sua face semitapada pela forma-flora, a cabeça na terra, a metamorfose do humano, a perenidade do vegetal, o crescimento de ambos, a síntese do biológico; o balancear do horizonte marítimo, o ver através da escotilha redonda, a linha ondulante das ondas a ondular, o borbulhar do líquido, o longínquo e o infindável do elemento aquoso; o passar das penas do pavão pelo olho, o veludo de um toque, a macieza do movimento, o imiscuir das cores da pena nas do olho; a contagem de todas as penas, afinal elas a prova da metamorfose dos pássaros, uma muito métrica cinemática, um contar pela cor e forma, o arranjo de uma composição que enche toda a visão e todo o quadro; a filha que se deixa mergulhar na água, o acalmar da superfície, o tempo que passa, os reflexos que na liquidez se desenham, e de onde, planos à frente, emerge para respirar o pai, corte e temporalização escondida, efeito alongado e cortado pelo tempo do filme, mas uma magia que remete para o mais analógico dos truques e trucagens do cinema; o folhear do livro de colagens, papel velho mas forte, o som do seu pegar e descolar, memórias no papel, carinhos do que deve ser sempre recordado; a vegetação que tomou a casa abandonada, fazendo dela uma floresta e um domínio do mais puro vegetal, a memória é também isso, raízes que tudo conseguem agarrar e pegar, rizomas afinal, ligações mais de nervo do que de bits, mais duras, mais fortes, mais de seiva e nutrição; os espelhos, refletores de olhos ou imiscuídos na floresta, camuflados mas movidos e feitos de reflexões que não se sabem lá; o arrastar do barco pela areia da praia, o pô-lo a flutuar, o remar e ir, em obliquidade, mar adentro…e mais imagens e outras imagens, que só a Catarina Vasconcelos se podem acometer – pois são delas – memórias e criações sobre elas, imagens que quis fazer e dar: partilha suprema, homenagem cumprida.
© 2021 Luís Miguel Martins Miranda