“Toda a miséria dos homens advém de não saberem permanecer em repouso num quarto”, como afirma Blaise Pascal, esta é uma citação muito recorrente face à actual circunstância de confinamento, mas está longe de ser experienciada enquanto confronto com a solidão inexorável. O filme “A Mulher Canhota” – “Die linkshändige Frau”, de 1977, de Peter Handke, constitui-se, acima de tudo, como experienciar ousado da busca da identidade de ser, assim sendo, não é acaso uma das ruas por onde a personagem Marianne (Edith Clever) deambula ser, justamente, a “rue de Pascal” (“rua de Pascal”). Desengane-se, portanto, quem cita Pascal sem ler a sua obra, e, como tal, considera a experiência de solidão como momento de repouso. Na verdade, o filósofo francês, entregue a si mesmo num quarto moribundo, compreende a solidão enquanto confronto com a dor e com a finitude. Já este filme não se circunscreve a um quarto, antes elege a cidade como palco de indagação, ainda assim, limita a vivência humana à busca de integrar a solidão e o mistério do ser, e desse modo, todo a sua narrativa (no que é dito e no que é remetido ao silêncio) foca-se no destino e na determinação de Marianne, uma Mulher Canhota.
Quando Marianne passa a noite fora, entregue ao acto de amor, com o seu marido Bruno (Bruno Ganz), estranhamos, enquanto espectadores talvez pouco entregues à reflexão e à coragem, que ela decida deixá-lo e que se separem na manhã seguinte. A compreensão, por parte de Bruno, face à decisão de Marianne em, a partir daquele momento, permanecer sozinha com o filho do casal, Stephan (Markus Mühleisen), não será um caminho fácil. Bruno irá interpelar Marianne, e nós, espectadores, podemos interpelar Marianne junto com ele, por que o deixou, por que o abandonou, ainda que se amem? A resposta pode consistir nisto: para que Marianne se entregue a si mesma. Para que ela se descubra a si mesma, em solidão.
Marianne não se entrega de imediato a grandes itinerários de reflexão, afirma estar contente e nem pretende ser feliz. Numa sociedade onde todas as (auto) ajudas constituem-se como prossecução da vida feliz (e não tanto da vida boa), voltamos a estranhar esta Mulher. Consideramos então que não, não se trata de um egoísmo em busca da felicidade, é antes um acto corajoso de confronto com a angústia de alcançarmos aquele instante em que a única coisa de que temos noção de saber, é que não sabemos quem somos, enquanto fugirmos de nós mesmos. Porventura fugir de nós mesmos é também fugir do Outro, pelo que, Marianne abandonar Bruno surge como o acontecimento ponto de partida do filme quase irracional, injustificável e pode caracterizar Marianne como bruxa. A professora Franziska (Angela Winkler) indaga-a constantemente sobre o que irá acontecer ao seu casamento com Bruno, outros homens tentam seduzi-la ainda que sem sucesso, pois jamais o seu amor pelo marido se coloca em causa, as tarefas domésticas jamais cessam já que são da ordem do habitar, e o único que nunca tem perguntas para fazer é Stephan, que apenas se desocupa para poder brincar.
É a cidade que acolhe Marianne sem perguntas incómodas e sem expectativas exasperantes, e é Kellner (Michael Lonsdale), o seu pai, quem lhe devolve alguma alegria ao vir visitá-la e vasculhá-la de memórias de afecto. Assim, que mulher-bruxa ousa ver a sua vida para além de si mesma e do olhar do Outro? A mulher que se dá em liberdade e não se reduz à força de trabalho doméstico, ao estereotipo da relação casamento e nem mesmo à função reprodutora. A subtileza de Handke reside na construção da personagem feminina como já adquirida de todas estas dimensões, mas fundamentalmente uma personagem não entregue em absoluto a essas mesmas dimensões. Marianne procura regressar ao trabalho que lhe dá o prazer pelo estímulo intelectual, resiste a ser nada mais que mãe, o que lhe permite observar o filho em estado puro. Ainda que secundária, como todas as outras personagens do filme, a criança tem um papel de destaque no diálogo inicial. Quando Stephan lê à mãe a sua redação de escola, Handke transporta-nos para o mundo idealizado através do espírito infantil que se perde com a socialização. É uma construção social que quer que nos resignemos às nossas figuras de ser mulher e ser homem; são, precisamente, essas mesmas construções que nos retiram a vida que é de graça, fazem-nos crer no sentido que tem cansarmo-nos para ganhar a vida. Nesse cansaço está tudo perdido, o mundo ideal é o do nosso espírito infantil e que nos diz “nunca estaríamos cansados”, como nos lê Stephan.
Perante as amarras da socialização ao espírito infantil, surge a violência. Não é de espantar a violência de Bruno como manifestação de quem não sabe o que fazer com o incompreensível do comportamento humano, e face a essa reacção, Marianne não responde senão com o elogio de um casaco novo que assenta bem em Bruno, bem como com um abraço ternurento, na certeza de que ainda que não permaneça com o seu amado, o seu amor por ele jamais cessará. A solidão não é avessa ao amor, e o amor por outrem dá-se no amor-próprio. Há, por conseguinte, uma força maior que embala o amor, a força de nos questionarmos pelo nosso ser no mundo, se este lugar de ser é entregue à engrenagem convencionada para o lugar da mulher, ou se este lugar de ser ousa afirmar-se em autenticidade e confronta-se com o mais íntimo e radical da existência humana. Creio que Marianne, contemplando a sua imagem espelhada, e encontrando nela beleza, abre-se para o reconhecimento da beleza fora de si, a partir da brecha que a solidão autoimposta lhe trouxe. Não creio, mais ainda, que Marianne tenha razões mais autênticas de saber ser ou de saber amar, somente por permanecer só, este é um caminho, todavia que não seja o destino. Permanecer só não conduz automaticamente à aprendizagem de ser-se só. Ser-se só acontece independentemente de nos possibilitarmos o destino amor, destino inerente à vida. E a vida é inerente ao amor. Assim, o destino que seja amor a partir do amor-próprio dá-se ao inscrevermos a nossa morada no Outro, e o Outro ao inscrever a sua morada em nós, ao sabermos cansarmo-nos um com o Outro e na partilha comum das solidões. Para saber amar, saber amar-se, no fundo dá-se plenamente quando o Outro é a nossa morada e “à noite estaríamos sempre acordados”.
Para o Cláudio.
Este texto foi escrito por Maria Inês Gomes