Faz hoje uma semana que o mundo assistiu ao trágico incêndio que devastou grande parte da Catedral de Notre-Dame, mais de 850 depois do início da sua construção. Até ao momento a tese defendida para a origem do incêndio, que deflagrou no telhado, é a de um acidente. Esse acidente involuntário destruiu todo o telhado e sótão, assim como o pináculo central e parte do tecto interior da catedral.
A Catedral de Notre-Dame é uma das mais antigas catedrais francesas do estilo gótico, tendo a sua construção sido iniciada em 1163 e terminada em 1345. A catedral francesa sobreviveu a revoluções e a guerras ao longo dos vários séculos, mas não sobreviveu ao incêndio do dia 15 de abril de 2019. Agora urge uma grande vontade em reconstrui-la, unindo todos e todas.
Foi durante o período do romantismo que o famoso escritor francês Victor Hugo (1802- 1885) escreveu o romance histórico “Notre-Dame de Paris” (“Nossa Senhora de Paris”), de certa forma em jeito de homenagem à própria catedral, para que esta não caísse no esquecimento do povo francês. Em meados do século XIX a catedral estava descuidada e a necessitar de restauro e manutenção, daí que o livro de Victor Hugo, publicado em 1831, tenha suscitado novo interesse e cuidado para com a velha catedral, mostrando que esta era a alma de Paris. O trágico romance de um amor não correspondido entre Esmeralda e Quasimodo teve um papel fundamental em restaurar a catedral à sua antiga glória, como um símbolo único de Paris.
O livro foi publicado originalmente em França com o título “Notre-Dame de Paris”, mas foi apenas em 1833, numa tradução para a língua inglesa que se destacou a personagem do corcunda (Quasimodo), sob o título “The Hunchback of Notre Dame” (“O Corcunda de Notre-Dame”, em português).
A obra de ficção de Victor Hugo foi das primeiras a abranger toda a sociedade da época medieval, não se limitando a ilustrar apenas a catedral, mas fazendo também profundos contrastes entre as personagens, desde os pedintes, os ciganos, os aleijados, à nobreza, clero e ao rei de França. Ação decorre em 1492, em Paris, na Catedral que era o centro da cidade, situada na Île de la Cité, focando-se em quatro personagens chave: o vigário/juiz Claudio Frollo, a jovem cigana Esmeralda, o disforme Quasimodo (surdo, cocho e corcunda) e o capitão Phoebus de Châteaupers. Esmeralda é uma bela mulher que dança nas ruas de Paris e que deixa todos os homens “enfeitiçados”. Frollo e Quasimodo, adoptado por este, possuem, cada um à sua maneira, um grande amor por Esmeralda. Mas o amor não é correspondido.
Este romance foi um êxito de vendas tendo sido mais tarde adaptado ao teatro e ao cinema. A primeira vez que o livro é adaptado ao cinema é em 1905, sob o título de “Esmeralda”, realizado por Alice Guy-Blaché e Victorin-Hippolyte Jasset, um filme mudo de 10 minutos produzido em França. Seguiram-se, ainda no cinema mudo: “The Hunchback of Notre Dame”, em 1911, realizado pelo francês Albert Capellani, produzido pela produtora Pathé e protagonizado por Henry Krauss, no papel de Quasimodo; “The Darling of Paris”, em 1917, realizado por J. Gordon Edwards, protagonizado por Theda Bara e Glen White, produzido nos EUA; “Esmeralda”, em 1922, realizado por Edwin J. Collins, uma produção inglesa; e “The Hunchback of Notre Dame”, em 1923, realizado por Wallace Worsley e protagonizado por Lon Chaney. Este último, foi a última adaptação no período do cinema mudo. Produzido pela Universal Pictures, foi um enorme sucesso nas bilheteiras em 1923, arrecadando mais de 3,5 milhões de dólares, tornando-se no filme mudo mais lucrativo do estúdio.
Com o advento do som no cinema, em 1927, surge a primeira adaptação cinematográfica sonora do romance de Victor Hugo, em 1939, com “The Hunchback of Notre Dame”, realizado por William Dieterle, e protagonizado por Charles Laughton (como Quasimodo) e Maureen O’Hara (como Esmeralda). Apesar dos efeitos especiais medíocres, este filme, produzido pela RKO Radio Pictures, é uma das melhores versões cinematográficas deste romance histórico, que conta com um grande desempenho por parte de Charles Laughton. Este filme é tido como um clássico, com desempenhos incríveis, mas tal como muitas outras adaptações a narrativa é ligeiramente alterada e a tragédia é romanceada.
Na década de 1950, surge uma nova adaptação (a primeira a cores), uma produção europeia, entre França e Itália, intitulada de “The Hunchback of Notre Dame” (“Nossa Senhora de Paris”), realizado por Jean Delannoy. Este filme de 1956, é protagonizado por Anthony Quinn (como Quasimodo) e Gina Lollobrigida (como Esmeralda), os únicos atores ingleses (que surgem dobrados), e o restante elenco é francês. Anthony Quinn interpreta aqui um Quasimodo muito mais humano e menos monstruoso do que nas anteriores representações e é talvez a adaptação mais fiel ao livro que existe até hoje. O filme foi um enorme sucesso em França, tendo sido o terceiro filme mais visto em 1956 no país.
Em 1996, surge a primeira versão cinematográfica em versão animada, “The Hunchback of Notre Dame” (“O Corcunda de Notre Dame”), da Walt Disney Pictures, realizado por Kirk Wise e Gary Trousdale. O filme surge no período dos anos de ouro da Disney (a década de 1990) e é o sexto dessa linhagem e a 34.ª longa-metragem de animação da Disney. Apesar de este ser um dos filmes mais sombrios da Disney, a adaptação da obra de Victor Hugo é romanceada e sofre algumas alterações à narrativa original (que é bem mais cruel e triste do que a versão da Disney). Nomeado para o Óscar de Melhor Banda Sonora, o filme obteve um estrondoso sucesso nas bilheteiras, tendo arrecadado mais de 325 milhões de dólares em todo o mundo. Esta é provavelmente a adaptação ao cinema mais popular de todas do romance de Victor Hugo, mesmo não sendo fiel ao livro. O happy end é uma característica comum nos filmes da Disney. Contudo, em 1986 já tinha estreado uma versão animada para a televisão, produzido por uma produtora australiana. Para televisão existem inúmeras adaptações, entre séries e telefilmes.
O cinema não se limitou a adaptar apenas o livro de Victor Hugo, tendo inúmeras vezes registado em imagem em movimento a beleza da catedral, nem que fosse por poucos segundos, em filmes como por exemplo: “Um Americano em Paris” (1951), “A Noite dos Generais” (1967), “O Fabuloso Destino de Amélie” (2001), “Antes do Anoitecer” (2004), “Ratatui” (2007), “Meia-Noite em Paris” (2011).
Graças a estes filmes, mas sobretudo à obra de Victor Hugo, a memória da sublime Catedral de Notre-Dame, “a idosa rainha das nossas catedrais”, como lhe chamava o romancista e poeta, perdurará na cultura popular por muitos mais séculos.