A premente ligação entre a memória das gerações e a arqueologia dos afectos

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Um melancólico e aconchegante drama da Netflix, transporta-nos para 1939. O filme de Simon Stone toma algumas liberdades em relação à verdadeira história da vida de um arqueólogo “invisível”, Basil Brown, mas brilha acima de tudo graças a um elenco incrível (Carey Mulligan, Ralph Fiennes, Johnny Flynn, Lily James) e à força da matéria-prima na origem do filme. Mulligan é uma viúva abastada e doente, Edith Pretty, também ela uma curiosa por arqueologia que tem a sensação de que um dos curiosos montes na sua vasta propriedade em Suffolk pode conter algum tesouro arqueológico relevante. No início, Brown, de origens humildes, terceira geração dos autodenominados “escavadores”, que ela contrata para fazer algumas explorações, discorda. Mas depois de quase ser enterrado vivo na consequência de uma queda de terra, tem uma revelação e começa a trabalhar sobre esse seu instinto fundado.

Narrativamente, o filme sofre de alguma desconexão. A primeira metade, que se concentra quase exclusivamente nas tentativas de Basil e Edith descobrirem o que quer que esteja enterrado, é bem passada e apresenta uma interação dinâmica entre os personagens. Embora qualquer elemento romântico esteja afastado, há claramente alguma coisa à espreita, como podemos testemunhar na reação de Edith aquando da inesperada visita da esposa de Basil, quando estes se preparavam para ter um jantar juntos. Mais ou menos a meio da narrativa de “The Dig” há uma mudança abrupta. A condição de Edith escala e ficamos a saber de uma doença terminal, Basil desaparece para um segundo plano e o filme é em grande parte assumido por três recém chegados e o triângulo romântico que os acompanha, o arrojado primo de Edith, Rory e os Piggotts.

Os elementos históricos do filme, que se concentram principalmente na escavação de Sutton Hoo em 1939, são apresentados com rigorosa atenção aos detalhes. A interação entre Ralph Fiennes e Carey Mulligan não é forçada, como já referido, a dupla exibe uma forte química, mais de uma variedade platónica do que romântica, e a recriação meticulosa da atividade contribui para o fluxo agradável da primeira metade. Quando o romance eclode entre Peggy e Rory, envolvida num mau casamento, eclipsa tudo o resto. “The Dig” tropeça e acaba por ser frustrante que os dois personagens principais das primeiras cenas do filme se tornem personagens de fundo. A resposta, talvez, esteja no fato de que “The Dig” seja baseado no livro do sobrinho de Peggy, John Preston. Ela foi de facto uma pioneira nos estudos modernos de assentamentos arqueológicos, ficando mais conhecida pelo seu nome posterior a esta data, Margaret Guido. Mas nada no seu arco de personagem no enredo reflete isso. Os vários sub-enredos não se consolidam em um todo, fazendo com que a segunda metade do filme ceda sob o peso como a lama tão presente em quase todas as cenas. Também relevante é a ousada disputa pelos direitos de exibição entre o Museu Nacional Britânico e o Museu local de Ipswich. Aqui surge nos uma disputa de classes entre o autodidata Brown que não possui diploma universitário, e os especialistas que com sua arrogância académica snob acabam por aqui e ali ter que dar o braço a torcer, especialmente porque Brown exibe consideráveis conhecimentos em várias áreas cientificas e curiosidade com o cosmos, compartilhando o seu telescópio com Robert, filho de Edith, criando assim um laço importante entre os dois.

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Se nos convidassem a fazer uma lista das profissões dos sonhos de infância, o arqueólogo, sem dúvida, teria uma classificação elevada, ao lado do astronauta e do futebolista famoso. E é fácil perceber o porquê. Nada é mais emocionante do que a promessa de descoberta, a ideia de que o próximo grande tesouro enterrado pode estar a uma pá de terra de distância. É um sentimento que tornou filmes como Indiana Jones icónicos e irresistíveis pela aventura inerente ou pela acção presente nos filmes de Lara Croft baseados nos jogos de computador. Mas também há uma triste beleza na arqueologia, que nos oferece uma janela para o nosso passado enquanto nos lembra de nossa mortalidade passageira. Não podemos deixar de nos perguntar o que os futuros arqueólogos descobrirão de nós, que histórias serão criadas com base nas coisas que vão sobreviver à nossa existência. Mesmo vivendo numa sociedade repleta de informação e meios de memória, são também dos mais falivéis, corruptivéis e alvo de degradação rápida.

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