“A Pior Pessoa Do Mundo” – Julie, in media res

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O filmeA Pior Pessoa do Mundo” inicia com um plano onde a silhueta de Julie (Renate Reinsve) contrasta com toda a paisagem da cidade de Oslo, que a envolve. E, por uma prerrogativa mágica do cinema, Julie está in media res, está, literalmente, no meio das coisas. Mas, essa vasta paisagem aparece como infinitude de caminhos possíveis e Julie começa a sentir a presença do seu abismo interior.  Talvez o cigarro que fuma contenha pensamentos e certezas sobre que caminho seguir, ou talvez não; talvez esse cigarro seja o único travão capaz de conter uma ansiedade crescente.

Com a infinitude ao seu redor, Julie procura por si mesma como quem pretende sentir o pulsar vital das coisas. Talvez seja esta vontade de sentir algo palpável que a leve para os estudos em Medicina, numa vontade de objectividade – que lhe deixa de fazer sentido. Porque talvez só cheguemos a uma maior compreensão de nós mesmos, se conhecermos os meandros da subjectividade? Ou, talvez, todos os mistérios da existência estejam contidos no mais irredutível ponto de vista subjectivo, numa Fotografia? Nesta caminhada, Julie vai intensificando a dimensão subjectiva da sua procura, tentando encontrar um caminho profissional capaz de lhe mostrar um conhecimento mais claro de si mesma.

Paralelamente à sua busca por uma actividade que faça ressoar as suas inquietações, Julie conhece Aksel (Anders Danielsen Lie), um conceituado desenhador. As mesmas ansiedades que surgiam quando Julie se peguntava “para onde?”, acabam por se prolongar quando se pergunta “com quem?”.  A dificuldade em aguentar o constrangimento que acarretam os encontros familiares – que facilmente se dissimulam num mais ou menos inocente policiamento e interrogatório  – faz com que as suas dúvidas interiores ganhem mais força e as inseguranças comecem a dominar.  A certa altura percebemos que, no primeiro plano do filme, o abismo das suas inseguranças abre-se diante de si. Julie é tomada por um sentimento de pânico ao olhar para si mesma tendo como referência o sucesso profissional de Aksel, acabando por ver a sua vida como estagnada. Só uma nova aventura será capaz de a colocar de novo em movimento.

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Julie infiltra-se numa festa particular à procura de anonimato e diversão. Trier filma esta cena com uma enorme subtileza. Julie – já vestida a rigor – vai entrando devagar e estrategicamente, pedindo um cigarro a um grupo de mulheres que se encontra à porta. Uma vez no interior, vai-se servindo do vinho e ganhando coragem para participar das conversas que vão surgindo. Eivind (Herbert Nordrum) observa-a, de forma discreta, com o olhar de quem já se encontra rendido ao charme inocente e irresistível de Julie. Um lugar vago, no sofá, ao lado de Eivind é ocupado por Julie. E, neste momento, entramos no conto moral de Trier.

Einvid passa a noite com Julie. Os dois conversam em cima da cama, enquanto uma mistura de desejo e de distância moral paira sobre os seus corpos. Ambos prometem fidelidade ao amor que têm pelos seus respectivos companheiros, enquanto uma química crescente os leva a criar uma intimidade sob formas inusitadas. Após se despedirem, na nudez quotidiana de mais uma manhã, tentam seguir os seus caminhos como se pudessem fugir à força do encontro que acabara de os unir.

Porém, a vida interior de Julie começa a ser invadida, ora pela intensidade do encontro ora pela força moral que o quer reprimir. Esta força moralizante começa a aparecer nas cenas mais decisivas da vida de Julie, como voz que mostra o contraste entre o caos dos seus sentimentos e uma consciência que tenta que as suas acções não sejam o efeito de meros deslizes de uma avalanche sentimental.

A grande qualidade do filme de Joachim Trier reside na forma como consegue tornar palpável o espectro moral que vai penetrando na vida de Julie. É certo que não o faz com a mesma mestria de Éric Rohmer, que conseguia uma aliança perfeita entre sensualidade e moral, conseguindo tornar palpável tudo o que pudesse, numa primeira impressão, parecer demasiado abstracto. E, para mim, não existe outro critério para distinguir um bom filme de um mau.  Nos maus filmes, tudo permanece numa dimensão abstracta, sem vida, sem o peso de tudo o que é verdadeiramente humano. Os filmes de Rohmer estão impregnados de vida sensível, de corpos desejantes, ao mesmo tempo que todas as palavras se enchem de vida. Nenhum signo é deixado vazio, todos contêm algum calor humano.

O cineasta norueguês sabe que para manter vivo o charme e a sensualidade das personagens, precisa ser subtil na forma como as dá a sentir ao espectador. Trier consegue dar a sentir as personagens de forma tão forte que ou a empatia é imediata, e nos revemos na personagem ou então, – no mais mesquinho dos casos – a personagem torna-se no alvo mais apetecível de todas “as melhores pessoas do mundo”, que mostram toda a sua repulsa por tão pós-moderna forma de vida, só para conseguirem segurar e mostrar, muito reactivamente, a sua própria rectidão moral. Mas, desde o ponto de vista do filme será sempre indiferente os que lhe possam responder: “eu sou igual” ou “eu sou diferente”, porque a beleza de um filme também reside na capacidade de ressuscitar algumas ambiguidades às quais a nossa melhor racionalidade está sempre a tentar escapar.

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