A questão do reconhecimento em “Une Nouvelle Amie”

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Une Nouvelle Amie, de François Ozon

Une Nouvelle Amie(2014) inicia com o funeral de Laura (Isild le Besco) entrecortado com flashbacks de como Laura e Claire (Anais Demoustier) se conheceram e permanecerem amigas até ao final da vida de Laura. A infortuna morte de Laura deixa David (Romain Duris), o seu marido, responsável por cuidar de Lucie, a filha bebé do casal. Além de melhor amiga de Laura, Claire é, também, madrinha de Lucie e compromete-se a ajudar David a criar a sua filha. Numa das visitas não anunciadas a casa de David, Claire depara-se com uma mulher desconhecida sentada no sofá e virada de costas para a entrada. A mulher, que enverga um vestido e sabrinas e tem um arrumado cabelo louro, embala a bebé enquanto a alimenta. Essa mulher é David. Tomada pela surpresa, Claire não sabe como reagir. David dirige-se para o piso superior e troca de roupa para explicar a Claire a situação.

Esta cena (Ozon, 2014, 00:15:16 – 00:20:47) — conhecida pela “cena da mamã” — é a primeira de quatro na transição de David e é também a primeira cena do percurso do reconhecimento de David. Há dois elementos interessantes nesta cena. O primeiro é que David não se reconhece a si mesmo como uma mulher, apelidando a situação de uma forma de luto. Isto evidencia a bilateralidade entre o reconhecimento de si e o reconhecimento mútuo: estes andam sempre de mãos dadas, um indivíduo apenas consegue garantir a sua identidade plena ao ser reconhecido por outro. O segundo aspeto prende-se a Claire.

Hesitantemente, Claire reconhece David, o que acaba por funcionar numa lógica semelhante àquela que Ricoeur recupera de Proust:

“De início, é posta uma ênfase na hesitação em reconhecer […]. É como se os protagonistas se tivessem disfarçado para criar a mudança. […] Reconhecer, nessas condições, requer um raciocínio que conclui ‘da simples semelhança de certos traços por uma identidade da pessoa’. […] ‘Reconhecer’ alguém é mais que isso, após não ter conseguido reconhecê-lo, identificá-lo é pensar sob uma única denominação duas coisas contraditórias, é admitir que o que estava aqui, o ser de que nos lembramos, não é mais, e que o que está aqui agora é um ser que não conhecíamos” (Ricoeur, 2006, p. 80).

O segundo encontro entre David e Claire é diferente (Ozon, 2014, 00:24:15 – 00:29:16). David recebe Claire já vestido como mulher e Claire ajuda-o a escolher algumas roupas que acha que lhe assentariam bem. Porém, o diálogo de Claire continua numa ótica psicanalítica, questionando-o sobre a sua mãe, perguntando-lhe se é essa a causa de se vestir de mulher. David rejeita e admite que, desde criança que sempre gostou de vestir roupas femininas, mas que era muito amado e não tinha quaisquer traumas de infância. Este momento é o derradeiro num ângulo psicanalista e a partir daqui o foco passa para a performatividade de género. David é agora Virgínia.

A terceira e a quarta cenas são as mais importantes na ótica do reconhecimento. Na terceira cena, Claire aceita levar Virgínia ao centro comercial, onde ambas fazem compras e vão ao cinema. Tanto Claire como Virgínia consideram uma tarde bem-sucedida. Virgínia foi credível no papel de mulher e fica feliz que os outros comecem finalmente a reparar nela.

Virgínia sentiu-se feliz por ter sido assediada no cinema por um homem e Claire questiona se esta é homossexual, o que Virgínia nega e, de seguida, afirma que: “só gostei que ele me reconhecesse como mulher” (Ozon, 2014, 00:42:38). A validação dos outros da sua performance é o incentivo que Virgínia necessitava para admitir que não se veste de mulher por Lucie, a sua filha, nem para fazer o luto, mas sim porque ela é uma mulher e é a partir deste momento que Virgínia começa a utilizar o género feminino quando se dirige a si mesma. Mais uma vez, o reconhecimento do outro surge como um elemento-chave para a consolidação do seu próprio reconhecimento e identidade: “é como se eu nascesse novamente” (Ozon, 2014, 00:43:26).

A derradeira cena (Ozon, 2014, 01:38:35 – 01:42:15) para a consolidação de um reconhecimento mútuo dá-se após o acidente de Virgínia, que a deixa em coma. Claire dirige- se ao hospital e vai até ao quarto de Virgínia. Enquanto canta Une femme avec toi de Nicole Croisille, Claire veste e maquilha Virgínia na esperança de que esta acorde. Virgínia desperta do coma após ouvir as palavras: “quando enfim me tornei mulher, mulher” (Ozon, 2014, 01:41:44) e consolida-se a metamorfose final de Virgínia, que não sucederia sem o reconhecimento mútuo confirmado nos segundos seguintes. Virgínia nunca mais voltará a ser David. Juntas dirigem-se para casa de Claire, onde o marido de Claire está com a filha de Virgínia, Lucie. O marido questiona se é David e Claire responde: “Não. É a minha amiga Virgínia” (Ozon, 2014, 01:42:55). Temos a fenomenologia do “homem capaz” ricoeuriana completa: David nomeia-se Virgínia (“poder dizer”); Virgínia reconhece-se enquanto causa, existe uma intencionalidade na sua performatividade de género independente de qualquer experiência traumática ou de desejo incontrolável (“poder fazer”); a identidade pessoal de Virgínia projeta-se em identidade narrativa (“poder narrar/narrar-se”) e Virgínia é a responsável dos seus atos (“imputabilidade”).

Simbolicamente, o ato de pintar os lábios é aquele que atravessa todas as fases de reconhecimento (Lisboa, 2016). Primeiro, Virgínia pinta os seus lábios de forma desajeitada, confirmando o seu reconhecimento enquanto mulher ainda trémulo, à espera de uma confirmação exterior. De seguida, Claire que pinta os seus próprios lábios, confirmando a transmissão e apontando já para um esperado reconhecimento. Por fim, na cena final, é Claire que pinta os lábios de Virgínia, comprovando o reconhecimento mútuo.

Ainda que o filme comece por assumir um travestismo temporário, Ozon deixa claro que este travestismo não se prende a uma ótica de desejo sexual, ou seja, de uma perversão, mas sim a um desejo intrapsíquico de ser mulher ancorado na performatividade de género (Reis, 2020). Diegeticamente, David/Virgínia procura um reconhecimento por Claire e tal tem um mote político e extradiegético: o filme procura um reconhecimento mútuo numa época em que se legislava o casamento homossexual na França, apontando para o desprezo fundamental a que a ausência de reconhecimento remete. Como Ricoeur deixa claro em Percurso do Reconhecimento (2006), o exercício das minhas capacidades faz-se sempre no domínio da intersubjetividade, o outro afeta inevitavelmente a minha narrativa e vice-versa. O percurso relacional e de reconhecimento afetivo entre Virgínia e Claire funciona como simbolismo de um reconhecimento social e institucional/judicial da comunidade LGBTQI+, em especial da comunidade trans.

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