“A Romancista e o Seu Filme” – Conversas, Escrituras e Cinema

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A vida como uma série ininterrupta de encontros e um filme como um filme sobre o que resulta dos encontros da vida quando se encontram com o filme que fala sobre ele mesmo e que dele se faz como um filme acerca da vida como uma linha sem fim de outros filmes (cinemas em potências) que são os encontros, conversas, opiniões, dúvidas e decisões perguntadas a quem conversa com quem (e que se fazem potências de cinema).

Conversa: ato mundano do artístico da vida. A estética do falar, duas mulheres sentadas e encostadas à montra de uma livraria, discursando sobre o que ficou para trás, o que pode vir à frente, o que se deixou de fazer, os livros que já não se escrevem, a escrita que já não se quer escrever, a escritura que já não se acredita que seja o que dela se pensava ser. Cigarros, luvas, um corpo mais cheio, a disciplina deixada. Brancura, luz aberta, para dentro da livraria não se vê, um café ou chá oferecido, outra conversa aceite.

Mesa: planura e copos, triângulo de nova conversa, tempo de troca, formas de palavras, palavras em forma, gestualidades repetidas, linguagem compreendida, o vértice ouvinte, sorrisos claros, e como se aprende somente…falando. Passa-o-tempo, ouve- se-a-fala, escuta-se-o-dito. A câmara espera, na diagonal do seu encontro com aquele tempo, aquela fala, aquele dito. Bebe-se. É quente. É doce. Acresce à conversação. Torna-a líquida, mais líquida. Fala-se sempre? Não. Para-se. E espera-se (porque se ouve, porque se disse). E a câmara, também ela, continua…a ouvir. O triângulo não se desmancha, não se desfaz. É sólido. Três lados, três linhas de raciocínio, ideias sobre estórias, os livros ali tão perto, conversas diferentes, conversação permanente, contar sobre contar, enquanto se discursa sobre o como contar. Ou não fosse ela, a Romancista Junhee (Lee Hyeyoung), aquela que está na encruzilhada das coisas escritas – as suas – das palavras fala e das palavras ouve, do que elas narram e do que elas experimentam, e não estivesse ela ali para outra coisa que não seja experimentar. Agora viaja, visita, opina, reflete, almeja, pergunta, aspira, por fim, respira, do único modo que o pode fazer, a indagar a si mesma (e a quem a ouve): que imagem a criar de seguida? Imagem no papel, registo do que se pode imaginar, escritora e escrita, leitor e leitura, crítica e análise, fruição e aceitação ou renúncia. O que ela fará a seguir será outra coisa, ainda não o sabe, ou talvez já o tenha dito silenciosamente. Imagens-imagens, não imagens-palavra, sem intermediários, sem mais nada do que a vontade de as fazer: as imagens-imagens são as que já colecionou e armazenou no papel, mas que agora quer (ou está prestes a saber querer) ver, sem mediações que não sejam a forma de as fazer e o fazer das suas formas. O branco prossegue, é sol de Inverno, mas é agreste, ilumina-se a si mesmo.

Encontro: mais um. O Realizador (Kwon Hae-hyo) é um fazedor de imagens que quase fez um filme da escrita da Romancista. Mais um sinal, de uma forma que se sente e sabe esperada, à espera de um realizador. Fortuito cruzamento (nunca é, estamos a ver um filme, e mais à frente sobre isso), e nele a Atriz Kilsoo (Kim Minhee) é encontrada e se faz encontrar. Os mesmos tempos de passamento, a câmara esperando, calada, deixando falar. Se a Romancista pausou a sua escrita, também Kilsoo pausou a sua interpretação de clara visibilidade popular. Retraiu-se, prefere passear apressadamente, estar longe do reboliço, do grande- grande-ecrã. O Realizador vai-se, a conversa já tinha algo azedado, falar muito e descuidadamente leva à resposta mais assertiva, e Junhee não se deixa por ficar sem…palavras ditas. Avança-se. A Romancista quer fazer um filme com a Atriz. Azo para…

Almoço: a câmara no meio, pratos à frente, fala-se sobre o filme, o que ele pode ser, o que se espera que ele possa ser, e quer-se mesmo que ela, Kilsoo, seja a atriz. Mas será um filme diferente, não será como os outros, será um filme de romancista. O que ele será realmente, elas não sabem, mas depressa se percebe, não haverá a força da máquina, será feito com quem nele possa estar, o estudante de cinema será membro da equipa, a câmara está assegurada. Assim se fará, porque sempre se faz um…

Filme: A Romancista é o cineasta, o cineasta é Hong Sangsoo. A escrita não é aqui, já se disse, uma parte de uma máquina, mas sim uma libertação de imagens, não as arquiva ou armazena, afinal. É livre porque sai no momento da leitura-interpretação. O método é o da câmara fixa e o do falar de um guião feito tão pouco antes. Os atores são as personagens do seu próprio atuar da libertação das palavras que são o começo de um algo que só a conversa entre atores-personagens e personagens-atores consegue realmente criar. Porque a câmara espera. Está ali para esperar. E espera. O filme da Romancista é o filme de Hong Sangsoo, a Kilsoo é a mulher de Hong Sangsoo a ser filmada por ele, imagens libertas, cor no preto e branco, o filme que se vê na tela por dentro da tela e para fora dela. O filme do filme dentro do filme se faz, outra vez, mas é choque, não se o esperava. Corte ou preenchimento, as imagens- imagens são de uma maior força, nada foi tirado, foi sempre cedido, sempre esteve dado, porque foi sempre uma cumplicidade, três agentes – realizador, atriz, atriz – escrita a falar da escrita-imagem, imagem-escrita a falar do escrever. No filme, o filme. No seu fazer, o filmar. Na sua forma, o seu deslindar. Não é engano, é só mesmo o filmar. O que está ali, o mexer de uma flor, o dizer de um “amo- te”. No fim, fica o cinema das imagens, o propósito de uma câmara, o querer fazer de um cineasta, o carrego dramático de um grupo de atores a…atuar. Enquadramentos, padrões em triângulo, linhas de olhar, conversas inteiras, pausas e silêncios, tempo a passar, cinemas a fazerem mais e mais cinema. O filme foi visto, a atriz-espetadora ficou sozinha. Quer falar sobre o que viu. Sobe, para mais conversar.

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