A Sala de Cinema há-de prevalecer!

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Cinema Trindade (Porto)

Recentemente questionaram-me sobre a importância do cinema na era do streaming e se o conceito de sala de cinema, como o conhecemos hoje, se manteria no futuro. Na minha opinião, a resposta curta e direta é que o streaming trouxe-nos coisas boas e que a sala de cinema há-de prevalecer.

Há espaço para os dois e um não tem de excluir o outro nem se sobrepõe. 

Tal como na música, também o cinema beneficiou bastante com os serviços de streaming ou serviços VoD (video on demand, ou vídeo sob demanda). O streaming foi uma forma de combater a pirataria, quer para a música, quer para o cinema. Foi uma forma de os tornar mais acessíveis, de ser mais “justa” (para o público e para o criador) e também de permitir conhecer novos criadores e novos trabalhos, em múltiplos dispositivos (smartphones, computadores, internet, televisões, tablets, boxes).

No caso do cinema, o streaming permite-nos aceder a um vasto catálogo de filmes de forma instantânea, em qualquer lugar (com ligação à internet), e ter acesso a filmes oriundos de todo o mundo. Tudo isto a um preço mensal de baixo custo. O streaming permite levar filmes onde a sala de cinema deixou de existir ou onde simplesmente nunca existiu. Qualquer pessoa na sua casa pode ter acesso aos clássicos do cinema que deixaram de ser comercializados em VHS e DVD, assim como aos autores mais contemporâneos, aos blockbusters mais procurados, etc.

O streaming permitiu também apostar na produção de filmes independentes que os grandes estúdios e produtoras nunca teriam investido. A Netflix foi pioneira nesta matéria, ao produzir os seus próprios filmes, em parte também porque percebeu que o teria de fazer para ter um catálogo diferenciado do restante mercado. “Beasts of No Nation” (2015) foi o primeiro filme produzido em exclusivo para a Netflix e demonstrou que era possível fazê-lo com qualidade, apostar em novos criadores, em novas histórias, e ainda receber prémios. “CODA” (2021) fez história ao ser o primeiro filme de um serviço streaming, Apple TV+, a vencer o Óscar de Melhor Filme (em 2022).

O custo de produção cinematográfica inflacionou imenso na última década, pelo que os grandes estúdios de Hollywood, com uma gestão mais conservadora, ou simplesmente parada no tempo, deixaram de apostar em determinados filmes. Foi aqui que empresas como a Netflix conseguiram inovar ao atrair autores novos, de forma mais inclusiva (na igualdade de sexual e de género), e com orçamentos mais volumosos.

Tudo isto foi possível num espaço de cerca de 10 anos (a Netflix surgiu como serviço de streaming em 2010). O que radicalmente alterou a forma como vemos cinema, mas também alterou a distribuição e a sua produção. O streaming transformou o cinema e vivemos uma nova era que apresenta muitas incertezas quanto ao futuro da mesma, tendo em conta a sua rápida expansão, com várias empresas novas a surgirem todos os anos, e a aumentarem o preço das subscrições mensais.

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Beasts of No Nation” (2015), de Cary Joji Fukunaga, primeira produção original da Netflix.

O streaming está a dar os primeiros sinais de exaustão no mercado.

O que assistimos hoje é que o streaming está a dar os primeiros sinais de exaustão no mercado. A compra de bilhetes de cinema continua a ser a forma mais lucrativa para o filme. A lógica de negócio do streaming está atingir o seu limite e vemos isso precisamente na Netflix, que apesar de continuar a liderar de forma isolada o mercado, sendo a plataforma com mais subscritores no mundo, mas que ainda assim teve de aumentar o preço do serviço de subscrição para combater os prejuízos de pagar direitos de autor a todos os filmes disponíveis em catálogo, assim como as suas próprias produções. Também a Disney Plus e a HBO MAX aumentaram os seus preços e estão a aumentar o número de dias em sala dos seus filmes em sala. 

Nos EUA, a Netflix já conta com um plano de publicidade, a um custo ligeiramente mais reduzido para o cliente, permitindo aumentar um pouco o lucro das empresas. A Disney Plus deverá também seguir o exemplo este ano, no mercado dos EUA.

Recentemente, o realizador James Cameron, aproveitando o sucesso em sala do seu recente “Avatar: O Caminho da Água”, apelou a que se regresse aos cinemas e que as pessoas querem mesmo voltar às salas. Ou seja, o streaming não é a forma mais lucrativa para os filmes. E percebemos isso também com filmes como “Top Gun: Maverick” (o filme mais visto de 2022) e a sequela de “Avatar”, que é já um dos dez filmes mais rentáveis de sempre da história do cinema. O streaming será sempre uma janela que manterá alguma rentabilidade aos filmes, mas não a principal fonte de rendimento.

Um dos problemas do streaming é que estão a tornar-se em sites de arquivo. Os filmes são vistos no momento da sua estreia e pouco tempo depois são esquecidos, e quem não tiver uma assinatura nessa plataforma terá mais dificuldades em ver (há sempre a pirataria, claro). Ou seja, o que acontecia com mais frequência, e que ainda acontece em algumas plataformas, é que os filmes não eram exclusivos de uma única plataforma, o que permitia uma empresa vender os direitos de exibição de um filme a várias plataformas, multiplicando assim os lucros e a forma de acesso do mesmo ao público. Hoje em dia, Netflix, Disney Plus, Amazon Prime Video, HBO MAX, Apple TV+, ou SkyShowtime, têm todos produções próprias, em exclusivo nas suas plataformas, o que lhes dá menos rentabilidade suficiente. Os filmes ficam “presos” naquelas plataformas e com o tempo são esquecidos. Ora, com a sala de cinema e com uma distribuição em múltiplas plataformas isso não acontece.

Já para não falar que para nós, espectadores, não é rentável pagar tantos serviços de subscrição ao mesmo tempo. Torna-se insustentável pagar todos os meses e também por isso algumas destas empresas têm vindo a perder clientes.

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Sala ou streaming?

Durante a pandemia, com o total encerramento das salas de cinema, as pessoas foram obrigadas a procurar outras formas de ver cinema. Naturalmente que os serviços de streaming cresceram exponencialmente durante esse período de confinamento obrigatório. Mas se a distribuição de filmes por streaming beneficiou disso, já a produção foi gravemente prejudicada. E estamos a sentir isso ainda hoje, em 2023. Imensas produções foram interrompidas, ou até mesmo canceladas, em 2020 e em 2021, e só foram retomadas em 2022 e no presente ano. Percebemos que em 2021 estrearam menos filmes do que era habitual. As salas de cinema, ou seja, as exibidoras, foram também as mais prejudicadas durante a pandemia. Muitas salas encerraram portas definitivamente um pouco por todo o mundo. Mas a maioria conseguiu reabrir e está ainda hoje a lutar pela sua sobrevivência. Acredito que as salas de cinema se recuperem a curto prazo do impacto causado pela pandemia.

As dificuldades que se sentem sobretudo hoje em dia estão na forma como se distribui o cinema e o exibe. Alguns serviços de streaming estão a encurtar o número de dias em sala dos filmes, passando-os diretamente da sala para o streaming. As salas não sobrevivem sem filmes e o streaming cresce muito com as estreias exclusivas e é neste limbo em que nos encontramos. Há quem esteja a fazer algo inovador nesta matéria da distribuição, até em Portugal, como a Cinema BOLD, que estreia os seus filmes originais e alternativos em todas as plataformas possíveis em simultâneo, ou seja, um filme estreia ao mesmo tempo na sala de cinema, no streaming (na FILMIN Portugal), em VoD, em videoclube e em DVD. Permitindo assim que o espectador escolha de que forma quer ver o filme. Pode ser um caminho a generalizar-se no futuro.

Não sei como será ir a uma sala de cinema num futuro distante, mas creio que será basicamente o mesmo que tem sido desde o dia 28 de dezembro de 1895. A sala de cinema, por mais invenções tecnológicas ou arquitetónicas da sala que façam, não deixará de ser uma sala de cinema. Continuará a existir uma sala escura, com quatro paredes, um teto, cadeiras, uma tela branca e a projecção.

A tendência poderá ser tornar-se cada vez mais num lugar para estreias exclusivas e para os festivais de cinema. Acredito que a sala de cinema continuará a ter lugar para os grandes eventos cinematográficos, para as grandes reposições de clássicos e que a experiência coletiva continuará a ser procurada, desejada pelo espectador. Continuará a haver cinéfilos que procurem esta experiência única que a sala oferece.

Nunca fui apologista do cinema “pipoqueiro”, nem quero com este texto defender os blockbusters, mas quer queiramos quer não, é o cinema comercial que mantém alguma rentabilidade às salas. O cinema independente e de autor não tem, infelizmente, a mesma rentabilidade. No entanto, é muitas vezes na sala de cinema que o podemos encontrar, em ciclos de cinema, mostras, retrospetivas, em cineclubes ou festivais de cinema.

A experiência coletiva continuará a prevalecer e é preciso incentivá-la, alimentá-la, através da educação, da formação de novos públicos. Ir ao cinema é uma experiência e essa experiência tem de ser cultivada. É uma questão de educação. Conhecimento e cultura são enriquecimento”, comentava o produtor português Paulo Branco em 2013.

No pior cenário, em vez de três ou cinco numa cidade poderemos passar a ter apenas uma sala de cinema, mas ela continuará a ser um templo sagrado. Continuará a ser um espaço mágico cada vez mais restrito de pessoas, que vão saciar as suas almas perdidas e famintas de sonhos. Um lugar de convívio e de reencontros. O ritual perdurará no tempo. Há hábitos que não se perdem nunca, adaptam-se aos novos tempos, mas não morrem.

Tal como no caso da música, as pessoas não deixaram de ir a concertos ao vivo e no caso do cinema, as pessoas não deixaram de pagar bilhete para entrar numa sala de cinema. Por muitas vantagens que o streaming tenha, não tem forma alguma de substituir a experiência coletiva de ver e ouvir cinema. “O homem é genial sempre que sonha”, já dizia o cineasta Akira Kurosawa. Continuará a haver sempre quem queira sonhar numa sala escura.

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“Porquinha”, de Carlota Pereda, que estreia a 19 de Janeiro na FILMIN e no Cinema Fernando Lopes (Lisboa) e na Casa do Cinema de Coimbra, é um exemplo dos filmes que a Cinema BOLD distribui todos os meses.
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