O enredo de ‘‘A Bússola Dourada’’ (2007), de Chris Weitz (‘‘Lua Nova’’ – Saga Crepúsculo) decorre num mundo paralelo, em uma teocracia retrofuturista onde a energia vem do âmbar, as viagens são feitas de balão e zeppelin (um tipo de aeróstato), há ursos polares inteligentes que governam Svalbard (um arquipélago norueguês do ártico), e a alma de cada humano tem um equivalente animal chamado de ‘daemon’.
Hoje, 15 anos após seu lançamento, podemos constatar que um fato levou ao desespero certos católicos do planeta não foi a (falta de) qualidade do filme, e sim uma instituição que aparece na obra escrita e no longa, o ‘‘Magistério’’.

Nesse ínterim, um editorial publicado pelo G1, em 25/12/2007, destacou que a polêmica surgiu pelo fato de que, nesse ambiente imaginário, o poder está nas mãos do Magistério – uma ordem religiosa que sufoca a individualidade e controla as almas das crianças, provocando a revolta da pequena Lyra Belacqua (vivida pela atriz Dakota Blue Richards), possuidora da bússola dourada que dá nome ao filme e que contém a verdade suprema.
Em sequência, em crítica publicada também no dia 25/12/2007, Lais Cattassini, do Cinema com Rapadura descreveu que “o chamado Magistério é o responsável pelo grande debate em torno da história. Com características claramente religiosas, os sacerdotes que representam essa organização de poder não medem esforços para dominarem o pensamento da população. A polêmica gira em torno do chamado “Pó”, uma substância secreta que, em teoria, liga homens, “daemons” e outros mundos, paralelos ao nosso”.
Corroborando com Cattassini, em colaboração à Associated Press, Christy Lemire enfatizou que “a respeito da polêmica sobre os escritos de Pullman serem anticristãos, e de que “A Bússola Dourada” instiga o ateísmo em crianças maleáveis e inocentes – qualquer referência a religião é totalmente vaga e aberta a interpretações. O mal que tenta manipular a mente dos jovens não é nenhuma igreja específica, mas sim o ensino autoritário e imposto da doutrina religiosa”.
Segundo Lemire, o filme é provavelmente bastante assustador para muitas crianças, com temas como totalitarismo e controle da mente; os adultos, por sua vez, podem achar difícil levar o filme a sério, apesar da seriedade a que o filme se propõe.
De fato, na obra do escritor britânico Philip Pullman, ele é descrito explicitamente como uma igreja poderosa que atua na intenção de controlar e cercear o livre pensamento dos habitantes de um mundo paralelo ao nosso.
O Magistério
De acordo com o Fronteiras do Universo Wiki, o Magistério é uma união de vários órgãos de influência religiosa, que juntos representam a Igreja Católica no mundo de Lyra (a protagonista do longa-metragem).
No enredo, o Magistério, entretanto, é muito poderoso e influente. Nesse contexto, antes de morrer, o Papa João Calvino moveu a sede do Papado para Gênova, e criou o Tribunal Consistorial de Disciplina, fazendo a Igreja possuir um poder político ainda maior.

Nisso, após a morte do Papa João Calvino, mais precisamente em 1564, o Tribunal Consistorial de Disciplina aboliu o Papado, de onde cresceram vários órgãos, que posteriormente iriam ser chamados de Magistério. A sede do Magistério ainda permanece em Gênova, e a maioria de seus órgãos são rivais entre si.
Por conseguinte, a entidade distópica é dividido em vários órgãos, os quatro mencionados na trilogia de livros foram: Conselho Geral de Oblação, Tribunal Consistorial de Disciplina, Sociedade da Obra do Espírito Santo e Colegiado dos Bispos (o mais influente órgão do Magistério).
Arquitetura futurista
No filme, vemos uma suntuosa arquitetura imersa em tecnologia avançada e inovação. Podemos defini-la com futurista. Para Margaret Imbroisi e Simone Martins, da página História das Artes, a arquitetura futurista refere-se a dois tipos de arquiteturas muito diferentes: é historicamente um estilo e pensamento arquitetônico pertencente ao movimento futurista italiano de 1910, mas de uma forma mais geral, é um projeto arquitetônico do século XIX e do século XX, cuja inspiração lembra elementos da ficção científica ou de naves espaciais, sem formar uma escola ou um pensamento específico.



A dupla de pesquisadoras elucida que tal arquitetura primeiro tomou forma na arquitetura do início do século XX como uma arquitetura anti-histórica, caracterizada por longas linhas horizontais que sugerem movimento, velocidade e urgência. Segundo Imbroisi e Martins, a finalidade da arquitetura se volta para responder de forma técnica racional e funcional ao modo de vida de um tempo novo, que levou à construção exigências de maior pragmatismo (higiene, iluminação, saúde, ventilação, conforto), onde o interesse das massas se sobrepõe ao interesse individual.
Retrofuturismo
No artigo cientifico “Steampunk: As transgressões temporais negociadas de uma cultura retrofuturista” (2012), Everly Pegoraro, professora do Departamento de Comunicação da Universidade Estadual do Centro-Oeste – Unicentro, define Retrofuturismo como a mistura entre elementos do passado (numa caracterização retro, obviamente) com tecnologia futurista.
Pegoraro explica que trata-se de explorar os limites e as tensões entre a racionalidade e a alienação provenientes dos avanços da tecnologia – algo amplamente evidente na narrativa do longa-metragem de Weitz, o estadunidense soube trabalhar bem esse artifício ao adaptar o argumento. Na cinematografia, Henry Braham também aproveitou bem o retrofuturismo.

Ampliando a definição, Pegoraro cita o escritor estadunidense Geoffrey D. Falksen. Para Falksen (2011), no Retrofuturismo, os autores “reinventam narrativas históricas tais quais a conhecemos, misturando personagens, fatos e ficções. A ideia é (re)viver ou (re)elaborar situações que existiram no passado, questionando o que teria acontecido caso algumas intervenções técnicas tivessem tomado rumos diferentes e/ou inserindo a tecnologia do “nosso tempo” nesse ambiente passado”.
Completando a definição Pegoraro delimita que, em outros casos, no Retrofuturismo, os autores simplesmente elaboram personagens contextualizados no século XIX, mas mesclados com características futuristas – tal característica também pode ser aplicada aos séculos XX e XXI.

Teocracia
O jornalista Elias Lascoski, do Politize, pontua que em um Estado teocrático pleno, o governo opera sob o argumento de que são ordens divinas. A vontade do povo, em geral, fica em segundo plano se não coincidir com os interesses do sistema vigente. Nisso, em tese, nos países teocráticos a divindade é reconhecida como o verdadeiro chefe de Estado.
Na prática, quem ocupa este cargo é um governante de carne e osso que se diz seu representante, descendente ou sua própria encarnação. É o caso do Magistério, em ‘‘A Bússola Dourada’’ (2007).
Trazendo para nossa realidade, Lascoski frisa que os Estados teocráticos do mundo contemporâneo cultivam princípios muito diferentes dos valores que norteiam a política dos Estados laicos. A fronteira mais visível que separa estas formas de pensamento é geográfica.
Nesse quadro, palpavelmente, todos os Estados Islâmicos, que é como se autodeclaram os países muçulmanos, monárquicos ou não, têm a teocracia como sistema de governo, como exemplo, podemos citar: Afeganistão, Arábia Saudita, Mauritânia, Paquistão e Irã. Nesse universo, a cidade do Vaticano é uma teocracia católica com o Papa Francisco como chefe do governo.
Voltando ao filme, o Magistério, por sua vez, caracteriza-se por ser um governo teocrático radical a partir de uma dominação tradicional. Para Max Weber, a dominação tradicional consiste na crença em instituições e regras transmitidas de geração em geração, conduzidas por um indivíduo ou grupo de pessoas, que se baseiam nos costumes para exercer a dominação.
Acrescentando, a socióloga Bianca Wild, sublinha que na dominação tradicional deve-se obediência à pessoa por respeito, em virtude da tradição de uma dignidade pessoal que se julga sagrada. Nisso, todo o comando prende-se intrinsecamente a normas tradicionais (não legais), o que na visão da pesquisadora seria um tipo de “lei moral”.
Nesse sentido, partindo da dominação tradicional e através de um modelo teocrático radical, o Magistério governa com mão de ferro, preza pela lei acima de tudo e todos, extinguiu a democracia, controla e censura à imprensa (não há imprensa livre), está em todas as instituições e entidades (públicas e privadas), cerceia a liberdade de expressão e livre-arbítrio da população, persegue, tortura e assassina opositores do sistema de governo. Além de atuar como legislativo, executivo e judiciário. Em si, é uma alegoria política e crítica direta ao poder da Igreja Apostólica Romana.

Fora que, paradoxalmente, a forma de governo teocrática apresentada no filme de Weitz é a mosaica, ou seja, parte da Lei Mosaica. A versão em português do Got Questions, detalha que a lei em questão foi dada especificamente à nação de Israel (Êxodo 19; Levítico 26:46; Romanos 9:4). Ela era composta de três partes: os Dez Mandamentos, as ordenanças e o sistema de adoração, o qual incluía o sacerdócio (muito evidente no filme), o tabernáculo, as oferendas e as festas (Êxodo 20-40; Levítico 1—7; 23).
Posicionamento do Vaticano e de entidades católicas
Na época, o Vaticano condenou o filme, tachando a obra de anticristã. Para o Vaticano, o longa-metragem promovia a ideia de um mundo frio, sem Deus e caracterizado pela desesperança. Para tanto, em um editorial longo, o l´Osservatore Romano, principal jornal do Vaticano, também fez duras críticas a Philip Pullman (que é ateu), autor do best-seller homônimo que deu origem ao longa de fantasia voltado ao público ‘familiar’.
A agência Reuters resgata que foi a crítica mais dura feita pelo Vaticano a um autor e um filme desde a condenação que fez de ‘‘O Código da Vinci’’, de Dan Brown. O editorial ‘papal’ terminava com a seguintes palavras:
‘‘No mundo de Pullman a esperança simplesmente não existe, porque não existe salvação senão na capacidade pessoal e individualista de controlar a situação e dominar os acontecimentos”.
O G1 pontou que a Liga Católica dos Estados Unidos, por sua vez, exortou os cristãos a não assistirem ao filme, dizendo que o filme tinha por objetivo prejudicar o cristianismo e promover o ateísmo entre as crianças, para barrar o lançamento organizaram um protesto que focava em boicotar a estreia nos cinemas.
O presidente da organização religiosa, Bill Donohue, chegou a escrever no site da liga católica americana que o filme é uma tentativa de “promover o ateísmo e denegrir os cristãos aos olhos das crianças”.
O portal reportou que, na página, a liga pediu aos católicos para que se afastem do filme, porque sabe que ele incitará a leitura da obra original que inspirou o longa. “Pais ingênuos que levam seus filhos para ver o filme podem acabar comprando a trilogia como presente do Natal”, acreditava a organização.
Lançamento
Neste rebu, o longa recebeu críticas mistas (mais para negativas) por parte da crítica especializada, apesar de ter ganhado um Óscar de melhores efeitos visuais e uma nomeação a melhor direção de arte, o filme não foi bem em bilheteria, com orçamento de US$ 180 milhões, a fantasia estrelada por Nicole Kidman e pelo eterno James Bond, Daniel Craig, decepcionou na estreia nos cinemas americanos (adaptado do G1).
O portal G1 levantou (2007) que o filme ficou em primeiro lugar no ranking dos mais vistos, mas teve bilheteria abaixo do esperado, com faturamento de apenas US$ 26,1 milhões. Por conseguinte, segundo a New Line, a distribuidora trabalhava com a expectativa de que a produção arrecadasse algo entre US$ 30 milhões e US$ 40 milhões em seu primeiro fim de semana em cartaz.
‘‘Foi um pouco decepcionante’’, disse Rolf Mittweg, diretor de distribuição e marketing da New Line, em declaração feita em 2007.
Nesse contexto, Daniel Craig, que interpretou o aristocrata Lorde Asriel no polêmico filme, disse ao jornal britânico The Times que “existe um direito básico de discutir essas coisas, ainda mais quando se leva em conta como está o mundo. Estamos dizendo apenas que é preciso poder discutir a fé”.
Palavra de Pullman
O autor da obra homônima Phillip Pullman explicou no programa “Al’s book club”, da emissora de televisão americana NBC, que manifesta em seus livros sua opinião de que “a religião é melhor quanto mais longe estiver do poder político”.
“Às vezes, as pessoas pensam que se algo for feito em nome da fé, deve ser bom. Infelizmente, isso não é certo”, pontuou o escritor.
Em resumo, para quem não conhece a trilogia “Fronteiras do universo”, ela é formada por “A Bússola Dourada” (1995), “A Faca Sutil” (1997) e “A Luneta Âmbar” (2000) – segue a linha das histórias de Tolkien (“O Senhor dos Anéis”) e C.S. Lewis (“As Crónicas de Nárnia”). O primeiro volume da série foi eleito pelos britânicos, segundo uma pesquisa das livrarias Waterstone, como o terceiro melhor livro dos últimos 25 anos (Via G1).