“A Vida de Adèle”, do realizador tunisino Abdellatif Kechiche, venceu a Palma de Ouro de Cannes em 2013. A exposição da descoberta sexual juntamente com a sensibilidade da exposição da paixão de um jovem casal destaca-se enquanto escolha narrativa.
É no clímax da polémica originada pela aprovação da união homossexual em França, em 2013, que surge “La via d’Adèle Chapitre 1 & 2″, culminando num ano de reflexões, debates e lutas dos direitos LGBTI+ na Europa e no mundo. A pertinência da obra é inquestionável, num século cuja continuidade à longa batalha da reivindicação da igualdade, no que diz respeito à discriminação da minoria homossexual, ensaia um manifestis in rebus teneri. Talvez por isto, tenha sido a primeira obra de Kechiche a ser exibida no Festival de Cannes e vencedora da Palma de Ouro, no mesmo ano. Foi com isto que Spielberg, líder do júri da edição do festival, admitiu que o prémio materializava o reconhecimento do árduo trabalho do realizador e das duas atrizes principais.
Apesar da fama e polémica do filme terem surgido duma crítica das massas às cenas de sexo explícito presentes no filme, é pela sensibilidade do realizador na expressão do romance das duas jovens protagonistas que a obra se destaca. É um facto que as filmagens íntimas das personagens principais pressupôs um trabalho intenso das atrizes, que admitiram, no fim da rodagem do filme, nunca mais trabalhar com o realizador. Com os planos intrusivos, o espectador sente mesmo que está a invadir a privacidade daquelas duas mulheres. O resultado é um conjunto de cenas sublimes, ao ponto do realizador conseguir que a imagem de Adèle coberta de baba e ranho seja tida como bela. Os close-ups dos lábios de Adèle acompanham o desenvolvimento da narrativa e o despertar sexual da protagonista. A forma como o corpo é exposto, sem pudor, leva o espectador numa viagem de percepção do corpo. O corpo e o sexo são expostos como se de algo nunca antes visto se tratasse, no entanto, não podia ser um tema mais banal, na medida em que esse imaginário invade as mentes de todo e cada indivíduo que se reconheça como ser sexual. Kechiche optou por esta exposição visualmente forte para passar, claramente, a ideia de exponente sexual e descoberta de Adèle.
Com cerca de 3 horas de duração, o filme é baseado na graphic novel francesa de Julie Maroh publicada em 2010 – “Le bleu est une couleur chaude” – na qual o foco está na descoberta e amadurecimento da sexualidade de duas jovens. O facto do realizador não utilizar o título homónimo à obra literária diz muito sobre as suas intenções relativas à interpretação do romance e ao que deste quis transmitir ao público. A alteração de “Le bleu est une couleur chaude” para “A Vida de Adèle” denota um cuidado na ênfase que se quer dar à banalidade do enredo. Kechiche quer mostrar apenas a vida casual de uma rapariga que, na sua juventude, se descobre e vive um romance, nada de extraordinário. A vida e o amor são o que são.
Exarchopoulos interpreta Adèle, uma estudante que se apaixona por Emma, Léa Seydoux, uma misteriosa jovem de cabelos azuis, artista e estudante de Belas-Artes. O primeiro contacto, na rua, discreto e aparentemente fugaz, trouxe olhares cruzados que se estenderam, inesperadamente, para um novo encontro, aleatório, num bar gay. Daqui nasceu uma relação forte, intensa e duradoura entre as envolvidas, cuja exposição do crescimento é o grande conteúdo do filme. Para além da evolução da relação, a narrativa acompanha o amadurecimento de Adèle e Emma enquanto indivíduos, ilustrando bem a forma como se vão posicionando em relação uma à outra e ao mundo. É de salientar o cuidado do realizador quando escolhe que uma das envolvidas na relação mantenha a sua orientação sexual escondida da família enquanto outra a assume publicamente. Isto denota a tentativa de uma exposição realista da questão da descoberta e aceitação da orientação sexual e das escalas de exposição que as diferentes pessoas envolvidas querem e conseguem ter. Apesar de parecerem questões específicas de um casal homossexual, percebe-se a intenção de mostrar as protagonistas como um casal regular, que, como toda a gente, tem as suas inquietações e segredos.
A cor azul, salientada no título, invade a atmosfera do filme, ilustrando, talvez, as qualidades emocionais que se vão evidenciando ao longo da narrativa. Apesar de parecer uma decisão muito óbvia, não deixa de ser interessante refletir um pouco sobre este pormenor, aparentemente, básico. Azul é uma cor fria, dizer que o azul é a cor mais quente é já por si um confronto ao axioma citado. Isto ainda se torna mais forte ao pegar na transgressão a este dogma e usá-la como máxima visual da narrativa. O azul está em todo o lado, começando pela representatividade de uma das personagens principais até pormenores como elementos dos planos de fundo que mesmo não sendo relevantes para o enredo em si, estão lá, e massacram a presença do elemento na visão periférica do espectador dentro do espectro do ecrã. O simbolismo do azul é também algo a considerar, dada a sua presença na evolução das personagens ao longo do filme. Percebe-se que é inserido, no início, como representação da tristeza e da dúvida, como se até o realizador, ao duvidar do facto do azul ser uma cor fria ( apropriando-se dela para expor uma história de amor) estivesse a tentar que o espectador também se questionasse para ideais que aparentemente temos como certos, mas que dependem sempre da percepção pessoal, neste caso: a orientação sexual. Duvidar do frio do azul implica o mesmo exercício mental de duvidar do frio que é existir numa falsa sociedade heterossexual. No fim a cor é inserida como representativa de felicidade e liberdade, liberdade que Adèle reconhece em Emma, com o seu cabelo azul e que foi a responsável pela mudança criada na protagonista e no simbolismo da cor ao longo da narrativa.
A prestação das atrizes principais é fenomenal e a utilização da atitude séria de Emma em contraste com a doçura e inocência provocadora de Adèle criam um ambiente de contraste extremamente apelativo e tentador. Também pela evidência deste contraste, as cenas de amor das duas personagens são fortes e bem conseguidas, ao ponto de chamar a atenção do público, mesmo que homofóbico. Esta chamada de atenção e, talvez, chamada à atenção vinda do realizador, mostra como o filme conseguiu atingir um dos mais bonitos e ambiciosos fins da arte: mudar mentalidades, fazer as pessoas crescerem e questionarem-se. Assim, “La via d’Adèle Chapitre 1 & 2″ é uma chamada para a realidade, uma tentativa de mudança do pensamento das massas e, com isso, um hino de esperança para a comunidade LGBTI+.
Realização: Abdellatif Kechiche
Argumento: Abdellatif Kechiche
Elenco: Léa Seydoux, Adèle Exarchopoulos, Salim Kechiouche
França/2013 – Drama
Sinopse: Aos 15 anos, Adèle nem sequer questiona este facto: uma rapariga namora com rapazes. A vida dela vai dar uma volta quando conhece Emma, uma rapariga jovem e de cabelo azul que lhe vai permitir descobrir o desejo e afirmar-se como mulher e como adulta. Adèle cresce, procura-se a si mesma, perde-se e eventualmente reencontra-se…