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“A Visita e Um Jardim Secreto” – O manual de sobrevivência de Irene M. Borrego

A Visita e Um Jardim Secreto Irene M. Borrego A Visita e Um Jardim Secreto Irene M. Borrego

“A Visita e Um Jardim Secreto”, o documentário que agora estreia nas salas portuguesas, é a primeira longa metragem da realizadora espanhola Irene M. Borrego, depois de anos a ajudar a produzir os filmes de outras pessoas.

Filme curto e inquieto, talvez por ser muito mais íntimo do que o que as suas imagens fazem crer, e que deixa no espectador muitas mais perguntas do que respostas. Reside aí grande parte do seu magnetismo, mas também na própria figura em que se centra, Isabel Santaló.

Santaló foi uma proeminente pintora nas décadas de 50 e 60 do século passado, mas por vicissitudes várias caiu no esquecimento da sociedade. A sua sobrinha e realizadora, Irene, vai encontrá-la no ocaso da vida, a sobreviver, mais do que a viver – as raras ocasiões em que a cara se lhe ilumina são quando fala sobre a sua arte e a mostra.

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“A Visita e Um Jardim Secreto”, não é, apesar de tudo, um filme biográfico, porque não fica a saber-se muito mais de Isabel Santaló no final como no início, nem pretende resgatá-la do esquecimento em que acabou, embora, sem querer, inevitavelmente o faça.

Em parte, é uma homenagem à própria honestidade intelectual e artística da pintora, escassamente retratada como uma mulher misteriosa, direta e honesta, algo que não terá sido muito abonatório para a sua carreira – a que se juntam o facto de ser mulher numa época em que as mulheres tinham apenas lugar nas cozinhas e nos anexos.

Um filme que é, ao mesmo tempo, um descortinar desconexo, apenas em aparência, de um pouco mais de informação sobre o percurso de vida de Isabel, mas também um exercício catártico da realizadora em relação ao seu passado, ao da sua família, e ao seu próprio presente enquanto participante de um mundo da arte que a própria considera desligado da arte propriamente dita.

O mesmo mundo com que Isabel não soube lidar, hoje talvez se diria que não tinha jeito para relações públicas ou para se publicitar. Contra si tinha o facto de ser mulher num mundo que não era o dela, mesmo que para nele entrar tenha que ter sido ostracizada pela família.

No presente, Irene revê-se em parte naquela sua experiência, ao refletir no seu próprio percurso inicial de vida, tendo cursado Economia e trabalhado na área para depois se dedicar às artes do cinema.

Partindo da mera observação de Isabel, se o espectador não se munir de qualquer contexto antes de ver o documentário estará apenas a ver o quotidiano de uma anciã que pode ser a avó ou a tia de qualquer um de nós. Trata-se não só de esquecimento, mas também anonimização de alguém que em tempos teve um nome, foi uma figura pública, e teria um futuro promissor pela frente.

Ficou-lhe apenas o presente, aquele mesmo devorador de realidades que o pintor Antonio López refere que apaga tudo o resto. A realidade assim o confirma, sobretudo quando o olhar da câmara de Irene repousa nos efeitos da idade no corpo de Isabel, muito longe da mulher que López conheceu em tempos, diz-se ser o único que ainda a recorda no auge da sua carreira.

O oblívio, ainda assim, não pertence apenas ao presente, a Isabel ele pertencia mesmo à época, quando percorreu o mundo à procura do desconhecido e da verdade através da arte. Irene quer respostas, quer saber o que é, afinal, o seu propósito enquanto artista e estabelece-se um diálogo algo arisco entre ambas, mas que acaba por trazer mais verdade do que a mera observação ou convivência cordial.

Se o esquecimento presente é uma realidade, a verdade é que a própria vida de Isabel Santaló foi um conjunto de esquecimentos, a começar pela família e continuando no contexto social em que movia. Solteira e senhora de si, cursando Belas Artes, e fazendo um percurso artístico reservado em grande parte aos homens, Isabel Santaló arriscou todos as linhas temporais em benefício da sua paixão.

Da sua produção artística restam poucos vestígios, percorre-se o seu estúdio e ainda existem resquícios de peças começadas, mas incompletas. Ideias interrompidas pelo fluxo do tempo, pelo cansaço do corpo e pela incompreensão de quem olha para elas sem lhes entrever significado.

“A Visita e Um Jardim Secreto” é um documentário atípico, pequeno, mas enorme em tudo aquilo que desconstrói e prepara para todo o diálogo de futuro que o espectador desenha depois de o ver. É também imperfeito, Irene apresenta-se dentro dele como interveniente, como arte, como verdade, deixa as suas perguntas irritadas no ar, não compreende ela muita coisa, frustra-se, mas não se retira da sua demanda.

Se o papel da arte é aqui questionado, algumas das respostas residem no seu diálogo interno, mas, ao mesmo tempo, no diálogo que estabelece com cada um dos que o olham. Isabel incorpora em si as artificiais barreiras sociais, as expectativas em curso para as mulheres, o seu papel no contexto do mundo dos homens, mas ainda o seu contributo para um futuro/presente em que outras mulheres possam não padecer de tanta inevitabilidade.

“A Visita e Um Jardim Secreto” é uma surpresa crescente, não cessa de querer que falemos consigo, é um trabalho ansioso, reflexo de uma genuína e visceral necessidade de agarrar o mundo antes que desapareça. No fim de contas, está também preocupado em não deixar-se cair no esquecimento, esse devorador de presentes.

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“A Visita e Um Jardim Secreto” – O manual de sobrevivência de Irene M. Borrego
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