“A Voz das Mulheres” (2022), o novo filme de Sarah Polley, é uma adaptação do romance best-seller de Miriam Toews, “Women Talking”, de 2018, ainda sem tradução para a língua portuguesa. A história é baseada no caso real de violações que aconteceram numa comunidade menonita na Colónia de Manitoba, na Bolívia, entre 2005 e 2009. Nove homens drogaram meninas e mulheres, dos três aos sessenta anos, usando tranquilizantes para gado, e as estupravam violentamente durante à noite. Quando as mulheres acordavam extremamente machucadas, eram levadas a crer que deliravam ou que se tratava de castigo divino.
Dez anos depois do excelente “Histórias que Contamos” (2012), Sarah Polley entrega-nos uma ficção bastante sensível que confirma a sua maturidade e segurança na realização. Com o argumento de Polley e Miriam Towes, “A Voz das Mulheres” conta com atores de prestígio como Rooney Mara, Claire Foy, Jessie Buckley, Frances McDormand (também produtora executiva) e Ben Whishaw. O filme estreia nas salas de cinema portuguesas no dia 09 de Março e concorre a duas categorias na 95.ª edição dos Óscares: Melhor Argumento Adaptado e Melhor Filme.
“A Voz das Mulheres” começa com uma mulher, Ona (Rooney Mara), a acordar assustada na sua cama. No meio das suas coxas formam-se grandes hematomas. Ela é acolhida por outra mulher, já não é a primeira vez que o ataque acontece. Nesta colónia religiosa e conservadora, onde estão isoladas, todas as mulheres (e não tardará chegará a vez das meninas) foram drogadas e violadas pelos homens dali. Ona não é a primeira vítima, e, se depender dos costumes desse vilarejo, também não será a última. Pois é justamente por fazerem parte da comunidade que elas decidem não compactuar mais com esse costume perverso.
Para os estupros cessarem e as crianças estarem protegidas, as mulheres, que não sabem ler nem escrever, aprendem a votar. E, assim, todas se reúnem e votam no que melhor representa os seus desejos: não fazer nada, ficar e lutar, ou partir. Eliminando a possibilidade de não fazerem nada, o filme é centrado na reunião em que as mulheres das duas principais famílias decidirão se vão embora ou se ficam e lutam. A decisão será tomada em unanimidade, de modo que cada uma irá contrapor o argumento da outra com base nas suas vivências e crenças, questionando os preceitos religiosos que as impõe o perdão, e considerando os riscos das suas decisões. É curioso, porém, que mulheres tão submissas e domesticadas, ao ponto de nunca pedirem nada aos homens, fossem tão capazes de argumentar e de se posicionar entre elas.
De início, por conta da ambientação rural e sem eletricidade, das vestes e dos penteados, acreditamos estar situados em algum lugar dos séculos passados. Depois, temos uma informação sobre o fim da Segunda Guerra Mundial, então, localizámo-nos no século XX. Quando finalmente, por meio de um carro de som que passa no vilarejo, ficamos a saber que estamos em 2010. Essa confusão dá ao filme um caráter atemporal que justifica falas tão contemporâneas saírem da boca de mulheres que vivem sem contacto com outras pessoas que não os habitantes da comunidade. Elas não falam as palavras “machismo”, “feminismo” ou “patriarcado”, mas, a partir das suas experiências traumáticas, elaboram sobre o desejo de igualdade e de liberdade, expressam sororidade e empatia e até concluem que, de certa maneira, os homens também sofrem com a cultura de opressão às mulheres.
Essa autoconsciência que desenvolvem ou, essa facilidade em processar assuntos complexos, pode soar estranho. Por um lado, pensamos que alguém sussurrou os pressupostos básicos do feminismo nos seus ouvidos, por outro, é possível entender que não precisa de muito para compreenderem que a violência que recai sobre elas não acontece porque são loucas ou porque estão possuídas pelo diabo. Basta viver na pele e basta ver as suas irmãs, mães, filhas, amigas, sempre mulheres, serem vítimas de uma agressão brutal para entender que isso é consequência de uma construção social centrada no poder do homem sobre as mulheres, e que esse poder precisa acabar antes que acabem com elas. Mas será que isso é mesmo suficiente?
O filme começa posicionando-se como um “ato de imaginação feminina”. E de fato o é. Sabemos que é virtualmente impossível que um grupo de pessoas da mesma comunidade, de diferentes gerações, que convivem diariamente, quando se reúne para decidir, num só dia, o seu futuro, tenham um encontro assim tão, digamos, tranquilo. Ainda assim, é bom acreditar que as mulheres podem decidir coletivamente sobre as suas próprias vidas e os seus corpos com uma simples assembleia em que o único homem que participa só se manifesta quando é solicitado.
Mas só quem tem uma família grande sabe que mesmo que um número considerável de mulheres tenha sido violada, sempre haverá uma avó alheia à realidade que defenderá o agressor, uma tia que dirá que a vítima exagera, vê coisas onde não tem. Nesse filme, duas personagens aterram os pés na realidade dura que conhecemos. Primeiro é Scarface Janz (Frances McDormand), que se recusa a participar da discussão e leva consigo a sua filha e a sua neta. Ela sabe que independentemente do que for decidido, ficará ao lado dos homens. Acredita que, mesmo tendo no seu rosto a marca da violência sofrida, os costumes não mudarão. Depois, há Marchie (Jessie Buckley), que é estuprada pelo marido, cuja presença é uma ameaça a todas as mulheres. Ela é provavelmente a personagem mais interessante. Passa o início do filme de costas para a câmara, inacessível, a virar o rosto apenas para destilar a sua raiva e contrapor qualquer vírgula que dizem. O ódio que sente pela vida tem a mesma proporção da sua resignação em mudar. Talvez esse seja o efeito mais cruel do trauma: a descrença de que outro modo de viver é possível.
Um filme tão centrado no que as mulheres, todas vítimas, têm a dizer, tem por princípio ético e estético calar e marginalizar os opressores. Os homens aparecem ao longe, com as suas sombras salientes e os seus rostos invisíveis. Numa cena plasticamente belíssima, vemos eles sentados nas carteiras da escola com as cabeças baixas e os rostos cobertos pelos braços, como se estivessem de castigo a refletir sobre o mal que fazem. A verdade é que não sabemos o que pensam, os conhecemos apenas pelos seus atos violentos contra as mulheres. De certa forma, são reduzidos a isso. Não sabemos se são bons pais, bons filhos, bons agricultores, comerciantes ou mesmo amigos. São violentos, e só. Mas nem todo homem. Temos aqui exceções.
Os meninos da comunidade são dignos de um plano fechado frontal, mesmo aqueles que estão no limite de tornarem-se os agressores que são os seus pais, tios, avós e irmãos. Também vemos o único homem, não por acaso trans, em que as mulheres confiam para cuidar das suas crianças. Melvin, quando percebeu que não se identificava como mulher, decidiu se comunicar verbalmente apenas com as crianças. A terceira exceção é August, professor da cidade, o encarregado de escrever a ata da reunião e registar os prós e contras entre ficar ou partir. A sua sensibilidade serve para comprovar que a violência não é intrínseca ao homem. Filho de uma mulher aguerrida como algumas das que estão ali presentes, August sabe que o seu lugar é o de ouvinte, e que o seu papel é o de educar os meninos para um futuro mais igualitário. O seu rosto submisso beira a uma fragilidade que incomoda o público que não está acostumado a ver homens se emocionarem sem que isso questione a sua heterossexualidade. A sensibilidade, no entanto, não está apenas nos olhos marejados, mas na prática empática de pedir desculpas pela violência que os homens causam às mulheres. “Espero ouvir essas desculpas de quem realmente as deva dizer”, responde Ona.
É fácil, porém, que o filme seja reduzido a uma leitura dicotómica entre homens maus e mulheres boas. Aqui, abusador não tem vez, não emitem uma só palavra, não os vemos mirar uma só mulher. Já elas vestem branco com flores claras quando dormem, e preto com flores escuras durante o dia. De noite são puras, de dia vivem de luto. Estão em luto pelas condições subalternas em que vivem, pelos seus casamentos fracassados, pelos seus filhos que crescerão violadores ou pelas suas filhas que crescerão violadas. O luto diário que vivem é tanto que é admirável que essa reunião não tenha precedentes na história desse vilarejo, exceto pelo caso (individual) da mãe de August que se rebelou e foi expulsa da comunidade.
“A Voz das Mulheres” é, antes de tudo, um exercício de escuta. Elas não se calam e não nos cansamos de as ouvir porque, embora partam da mesma experiência de violência, não se repetem. Posicionam-se e se expressam cada uma ao seu modo: umas de forma agressiva, outras de forma poética, outras com crises de ansiedade, outras fingindo que não sofrem. Cada uma tem o seu momento dramático e, no fim, são sempre acolhidas. No entanto, é verdade que não são raras as vezes que fica confuso quem pensa o quê. Talvez porque nem elas mesmas saibam — estão a descobrir juntas enquanto processam não apenas o trauma, mas aquilo que farão com ele.
O que aprendemos quando as ouvimos, é que elas não se interessam em reeducar os homens. Sabem que isso não lhes compete, e sim a eles próprios. Elas desejam criar meninos para o futuro que almejam e não para o presente que as destroem. Em última instância, a reunião é um ato coletivo para pensarem em benefício próprio, deixando que os homens resolvam os seus próprios problemas. Durante o processo de descobrirem o que pensam sobre si, sobre os homens e sobre o mundo em que querem viver, se ficam e lutam ou se partem, já não importa. O que se sabe é que jamais voltarão a ser o que eram.