A necessidade do vazio não preenche a vacuidade do nada. Se esse nada pode ser mais que o tudo, então o vazio interno poderá ser amenizado pela procura e vivência do absoluto vácuo? Será por isso que Roy McBride (Brad Pitt) anseia tanto pelo alto, para que assim se possa lançar, em queda livre, do limiar do espaço para o ar rarefeito, onde a espiral é descontrolada e o movimento do corpo é a leveza de um deixar-se ir, calma estranha, rodopio constante, respiro mantido, batimento certo, lançamento auto-sustentado: ele cai porque se atirou, foi pensamento calmo, decisão acertada, controlo próprio, apesar do rodopio gravitacional, ele escolheu saltar, não só pelas razões corretas de sobrevivência e resolução única, mas também porque é um corpo do e para o vazio, não busca o amparo, procura antes a fluidez do aberto, da superfície não-existente, da vacuidade enquanto espaço de inscrição do esquecimento de si e dos seus pensamentos.
Entre o auto-controlo extremo e a depressão permanente, não parece haver muita separação, tal se correspondem mutuamente, estados iguais na sua diferença, posturas equalizadas nos sorrisos pouco desenhados e nas entoações monocórdicas. As suas avaliações psicológicas são frias e mecânicas, a sua voz é indicativa, informativa, e não ambígua. A dificuldade é que ele seja outra coisa: emotivo, caloroso, aconchegante. O mesmo cálculo que lhe permitiu prever um salto da altíssima atmosfera, o adequar das funções corporais à velocidade da queda e o diminuir da velocidade de aterragem é o mesmo que o impede – porque pressupõe algo mais do que só o puro controlo de variáveis conhecidas e não das emocionais, por natureza não controláveis – de manifestar a verbalidade física daquilo que sente. Sendo o personagem que mais sente e pensa em si, nunca consegue vocalizar para o exterior o que realmente traz consigo. É também, para a exterioridade que o olha e percepciona, emotivamente vazio.
O seu caminho é, no entanto, um de redenção, de refeitura de si e de reinscrição no mundo. Para tal é necessário ir para além do que os outros, todos os outros, desconhecem. Através do vácuo que é tanto o seu meio fluido quanto é o absoluto espaço aberto para todos os outros: ele fará a viagem mais longa, a mais solitária, onde se verá a ele próprio como o homem só que é, o deslocado e desconectado que sabe que é, remetido a um pensar contínuo e adormecido, sempre para cada vez mais longe, cada vez mais através do vazio nulo em que ele é um outro vazio em busca da razão de ser. A qual só pode ser conseguida através do confronto com o pai, Clifford McBride (Tommy Lee Jones), eminente cientista-astronauta, homem das estrelas e não da terra, tal como o filho, mas de uma forma absolutamente diferente: ele preconiza o movimento irredutível para a última exploração, a de mapear o Universo, para nele procurar o Outro extraterrestre, a outra inteligência, as outras corporalidades, aquelas que poderão ser encontradas no próprio limite do vazio, onde mais nada há a interferir com a ação da exploração tecnológica, telescópica e visual. Só para lá do nevoeiro dos sinais que enchem e confundem, pode ele encontrar um vazio de uma tela tão imensa quanto universal.
O tema da exploração, aqui novamente trabalhado por James Grey, comporta duas figuras em antinomia: o filho explora o interno, o pai explora o externo. Um é absolutamente vertido para o dentro, o outro absolutamente extrovertido para o fora. Filho para o vazio, pai para as estrelas. A família que o pai destroçou, indo em direção delas, é uma que não se pode reconstituir na forma da continuidade geracional: o filho, desprovido da relação, foi incapaz de fundamentar os modos do relacionamento com o outro e amar a sua própria mulher, Eve McBride (Liv Tyler), a qual o deixou, já depois de ele a ter deixado, mesmo quando junto dela. Corpo desfasado que é, ele é tanto sombra quanto fantasma – “o filho de Clifford McBride” – de um muito ambíguo herói que foi capaz de matar aqueles que não foram como ele, dedicados em absoluto à ideia de que a sua missão sempre encontraria e provaria o seu objetivo final: a de haver realmente vida inteligente para além daquela que da Terra saiu para procurá-la. Só mesmo o resultado funesto das lutas internas ocorridas na estação científica ancorada na órbita de Neptuno, a Sobrecarga chegada à Terra e ameaçadora da sua própria continuada e tecnológica existência, permitiu ao filho saber que o seu pai ainda se encontrava vivo.
Pior do que uma sabida – e aceite – família acabada é saber-se que ela poderia nunca ter sido feita acabar. A sombra-fantasma tem que carregar consigo os meios para poder destruir os sonhos do pai – as palavras e o dispositivo tecnológico de destruição maciça – enquanto sabedora de que viria sempre a encontrar alguém que o havia deixado sem mais do que um olhar para trás gravado em vídeo. Declaração fria e bem definidora da falta de importância dada por um pai ao conceito-família, infinitamente diminuído perante o conceito do universal, o mesmo que o filho irá obliterar. A família mata a tecnologia? Ou a tecnologia a família? Quando, já entrado na Estação Lima, Roy fala ao pai – 30 anos após a sua partida – Clifford (re)afirma, pelas palavras que só postulam os atos tidos, que nunca quis saber nem dele nem da sua mãe, e que aquele lugar foi sempre a sua casa. Tenta ainda convencer Roy a prosseguir com ele, para mais estudar telescopicamente para lá do Universo Conhecido, para o lá do lá, para onde ele nunca poderia conseguir ver e explorar. O que quer Roy é levá-lo consigo, refazer a conexão. Mas no espaço, Clifford pede-lhe que o deixe ir, que o deixe vogar e rodopiar nesse vazio que ele encontrou como tal, um sem mais nada do que a nossa própria existência e a nossa própria inteligência. Roy deixa-o ir e larga o grito mudo do vácuo. Regressa. A força do tecnológico-explosivo impele-o para casa. A Terra. Onde ele cai novamente. Suavemente, desta vez. Mais do que aterrar, poisa. Torna-se assente. Enche-se. (Re)forma-se.
Sós e humanos. Na terra postos, o firmamento acima. Mais haverá que explorar?
© 2022 Luís Miguel Martins Miranda