“Amiko”, de Yusuke Morii: O Mundo ao Contrário

"Amiko", de Yusuke Morii "Amiko", de Yusuke Morii

A sinopse de “Amiko” é curiosa e aos adultos pode escapar a acidental ironia por detrás daquela descrição em que a menina Amiko é referida como uma criança que por culpa da sua grande curiosidade e energia está sempre em apuros com as outras crianças e com os adultos.

Esse é um bom ponto de partida para olhar para Amiko com o olhar de uma criança, se o espetador a esse exercício estiver disposto, até porque o filme é inteiramente encarado da perspetiva da menina.

Permite a pergunta: como é que uma criança não se adequa no mundo das crianças, que é, em teoria, livre, imaginativo e sem limitações?

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“Amiko” é o primeiro trabalho de Yusuke Morii e conta a história de uma criança, Amiko (Kana Osawa) que vive nos subúrbios de Hiroshima com o pai (Arata Iura) e a mãe que está agora grávida (Machiko Ono).

A história é baseada no premiado romance de estreia de Natsuko Imamura e conta com a omnipresente e fantasmagórica banda-sonora da artista folk japonesa Ichiko Aoba, inteiramente apropriada a esta viagem pelo crescimento, mas também pelo trauma que Amiko atravessa.

“Amiko” é um filme delicado sobre o que significa ser-se alguém que não se enquadra desde muito cedo no contexto social meramente porque as restantes crianças não perdem tempo a ser crianças e já têm os vícios dos adultos.

A pequena Amiko é estranha, gosta de fazer perguntas inconvenientes, sonha muito acordada, e, numa sociedade tão organizada, parece sempre um pouco desarranjada, anda suja, tem cicatrizes nas pernas, gosta do inconvencional, reza pelas almas dos seus bichos de estimação falecidos num pequeno santuário que construiu no jardim.

A juntar a tudo isso, a mãe perde o bebé e, com isso, Amiko terá de lidar com a perda da irmã, mas também da mãe, que desaparece por entre os dedos cruéis do luto e involuntariamente abandona a família.

O pai de Amiko também não sabe lidar com a perda, o irmão sai de casa para se juntar a um gangue, e, lentamente, Amiko vai perdendo o fio à sua já ténue meada. Deixa de ir à escola, não toma banho, come comida já feita que o pai compra, e não percebe o que aconteceu com a irmã. Pergunta-se inocentemente porque é que ninguém lhe explica.

Yusuke Morii tem aqui um trabalho visual também ele um pouco inconvencional e que vive grandemente do enorme talento da pequena atriz que interpreta o papel de Amiko, Osawa Kana. A câmara delicia-se em grandes planos da cara de Osawa ou em focar alguns dos desajeitados movimentos da menina, como quando espreita os alunos da mãe nas aulas de caligrafia e esmaga uma maçaroca entre os dedos.

Lentamente, o mundo de Amiko vai encher-se de fantasmas e quando a mãe deixa mesmo de sair do seu quarto, a menina começará também a imaginar que há até fantasmas na varanda adjunta ao seu próprio quarto. Aos poucos, os fantasmas acompanham-na na rua e aparecem até para fazer uma viagem de barco ou um piquenique.

Esta é uma viagem sensível ao mundo da perda emocional na perspetiva da criança, sem que os adultos tenham qualquer intervenção ou sequer relevância, simplesmente não existem. Talvez sejam eles os fantasmas.

Às tantas, quando Amiko escapa para aquele mundo fictício, é inevitável pensar que é isto que os adultos para ela representam ou, como também será natural, trata-se apenas da criação de um conjunto de pessoas que possam acompanhá-la sem a julgar.

Em certos momentos, como na enfermaria da escola, aquele mundo parece começar a invadir a vida real, mas pode ser só imaginação (será?). Entretanto, Amiko, descalça e vestida com roupas demasiado grandes para o seu tamanho, insiste em perseguir o amor nos lugares mais áridos, como a sua eterna paixão de infância, que a odeia e a chega a espancar para a afastar definitivamente.

“Amiko” é um belíssimo conto sobre a imaginação, a dor, a crueldade nos lugares mais improváveis, mas também sobre a grande superação que pode advir de forças próprias, que é o que acontece com Amiko.

Apesar de todos os percalços, é uma história de esperança e de cura feitas pelas próprias mãos que apenas peca por perder o rumo ao ritmo da sua primeira parte. Pode tornar-se tão alheada que os enormes silêncios ou os repetitivos planos de pessoas ao fundo de corredores ou a olhar para o horizonte de costas para a câmara já não acrescentam nada de novo à história.

“Amiko” é ainda um belo exemplo de como o cinema japonês se arrisca a mostrar o que existe para lá da norma, o que é marginal, o que não é perfeito ou até mesmo a exteriorização da dor, do luto feito para fora, com choro, sem controlo e sem medo de parecer mal.

"Amiko", de Yusuke Morii
“Amiko”, de Yusuke Morii: O Mundo ao Contrário
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