«Aninsri Daeng» – Descascar o falso até sentir o verdadeiro

redan 29

O festival internacional de cinema “Curtas – Vila do Conde” deu início, no dia 16 de Julho, à sua 29ª edição. Como já é tradição, o festival traz a lume as curtas-metragens, nacionais e internacionais, de realizadores emergentes.

Na secção “Competição Internacional” marcou presença a curta do realizador tailandês Ratchapoom Boonbunchachocke, “Aninsri Daeng”, à qual darei especial destaque neste texto.

A curta de Ratchapoom consegue aliar de uma forma harmoniosa a sátira aos filmes tailandeses dos anos 70, que tentavam imitar os géneros clássicos de Hollywood, a um exercício estilístico, rigoroso e aprimorado, capaz de subverter, com extrema subtileza, os clichés formais associados ao género de espionagem, que estruturam a narrativa do seu filme.

A narrativa centra-se na relação entre duas personagens: Ang, um homem travestido de mulher, que recebe a missão de se disfarçar de espião para seduzir Jit, um jovem ativista, inimigo da nação, que abriga e esconde Miss Josh, líder política da organização.

A narrativa do filme conduz-nos directamente para a acção das personagens. Nesta dimensão, o realizador faz-nos sentir que os corpos que vemos na tela são marionetas, manipuladas, pela narrativa e pelo próprio realizador. A narrativa acaba por ser o elemento falsificador primordial, que encobre a verdade que o cinema consegue captar. Aquilo que Ratchapoom faz nesta curta é um delicado processo de redescoberta da verdade que existe por trás de todos os elementos estéticos falsificadores, que constituíam o género tailandês.

Podemos afirmar que, neste exercício formal, existe uma forte inspiração no cinema bressoniano. Se o realizador tailandês redescobre a verdade é porque um filme tem a capacidade de se tornar um ser vivo, sempre que vislumbramos nele uma vida interior, uma força interior pulsante que faz as imagens abrirem-se, desabrochando perante o nosso olhar como o botão de uma flor.  Assim compreendemos a declaração enigmática de Bresson quando afirmou: “o cinema é o movimento interior”. Se um filme pode conter vida é necessário acreditar, quase com um fervor religioso, numa espécie de criacionismo. O realizador trabalha no filme como num pedaço de barro até conseguir tornar visível e sensível o sopro de vida que o perpassa.  Bresson conseguia isso através de uma estética antiteatral, baseada nas relações que ia estabelecendo entre as várias imagens e sons. A sua estética tinha um paradoxo que a tornava absolutamente singular: enquanto os seus modelos se moviam, dialogavam e faziam a narrativa progredir de forma eficaz, nos seus interstícios uma outra dimensão se vai desdobrando paralelamente: a das sensações. De um lado, a lógica da representação vai levando a história, na lógica clássica, de acontecimento em acontecimento, até à sua conclusão; por outro lado, dentro dessa lógica nascem micro-movimentos que parecem sair dessa vida interior misteriosa do filme. Esta leitura do cinema de Bresson não é nova, Jacques Rancière dedicou grande parte da sua obra sobre estética e política, a analisar esta duplicidade de movimentos que perfazem um filme. De um lado, a montagem cria uma hipernarrativadade, seguindo uma lógica progressiva linear: estamos na dimensão do que Rancière chamou imagem-relais; por outro, os corpos dos modelos e os objectos, que participam dessa imagem-relais, possuem uma superfície de intensidades, onde proliferam os afectos e sensações: estamos no que Rancière denominou de imagem-ecrã. Enquanto a primeira imagem (relais) cria a fábula, a segunda (ecrã) suspende-a e contraria-a.

Esta breve referência ao cinema de Bresson e aos paradoxos que o compõem vão ajudar-nos a perceber melhor o trabalho formal que o realizador tailandês consegue levar a cabo ao longo dos trinta minutos de filme da sua curta-metragem. Em cima afirmei que a narrativa seria o elemento falsificador por excelência, e a fórmula narrativa (do género de espionagem) que se vai desenrolando no filme possui bem presente essa sensação de falsidade. As vozes dobradas, que era um dos elementos que distinguia este género cinematográfico tailandês, são o mais forte sintoma desta falsificação levada ao extremo. As vozes dobradas fazem com que os corpos dos actores nos apareçam como marionetas, algo que provoca de imediato uma estranheza no espectador. A voz no cinema teve sempre um lugar assessório (herdado da lógica do teatro) cuja função seria ilustrar o carácter das personagens, a sua vida psicológica e tornar inteligível a narrativa. Se trago para esta reflexão o conceito de cinematógrafo é porque a vida formal desta curta-metragem, consciente ou inconscientemente, muito lhe deve. A voz, para Bresson, era um elemento de primordial relevância no seu cinema. Se a voz do actor era demasiado movida pela exterioridade e pela psicologia da personagem, isto é, era um duplo criado pelo actor, condenado à falsidade, a dobragem era por si considerada uma “barbárie ingénua”, de onde nascia a impressão das vozes “se terem enganado de boca”. Os seus modelos falavam com “vozes brancas”, um tom neutro, sem entoação. Esta neutralização das entoações teria a dupla função de contar a história das personagens e de dar uma materialidade sensível ao filme; a voz branca, apagada de qualquer entoação exteriorizada, garantia a harmonia entre a imagem-relais e a imagem-ecrã.  O modelo diferia do actor pela capacidade de todo o seu ser se tornar forma fílmica, presenças estética e humana, corpórea e espiritual.  Neste sentido, a voz é um elemento sensível primordial que contribui para essa vida interior fílmica, para garantir o fluxo do seu movimento interior.

Em “Aninsri Daeng”, a voz é o seu núcleo formal e narrativo, ao mesmo tempo. No início do filme, as vozes de Ang e Jit aparecem-nos dobradas, com um tom extremamente feminizado. Se lermos o filme de Ratchapoom apenas por esta dimensão, certamente o iremos estranhar e dificilmente suportar. Porém, vendo-o na sua unidade, o seu filme valoriza-se sobremaneira. Essas vozes dobradas e incrivelmente falsas, impossíveis de acreditar, vão sendo faladas por meio de uma imagem num formato clássico de 4:3, de cantos arredondados, onde os actores, embora estejam ainda despossuídos da sua voz natural, possuem uma corporeidade forte. Ang aproxima-se de Jit para cumprir a sua missão e seduz Jit. Esta nuance narrativa adequa-se perfeitamente a esta lógica de despir o falso do filme para chegar ao verdadeiro, uma vez que a missão de Ang é entrar na personagem de espião, ou seja, criar um duplo de si capaz de enganar Jit – e a si mesmo. O encontro entre os dois vem provocar uma mudança significativa. O cliché comprova-se. Ang apaixona-se por Jit, durante a sua missão e recupera a sua voz verdadeira. Os planos do encontro entre as duas personagens reforçam as inspirações bressonianas: planos de mãos, que suavemente deslizam, tendo como fundo a textura colorida, com uma qualidade quase háptica, dos lençóis, para se tocarem e agarrarem. A escolha pela fragmentação das imagens e a sua colocação em relações e encontros com outras imagens vem intensificar a sua lógica afectiva, subvertendo o cliché narrativo. A coloração dos planos, a precisão dos gestos, os movimentos mínimos dos corpos vêm povoar o filme com afectos e sensações vibrantes, que acabam por ir descascando a capa falsa que a narrativa impõe ao filme e aos corpos das personagens.

Se Ang, pela verdade da sua paixão, recuperou a sua voz verdadeira; Jit não teve a mesma felicidade. Nas cenas finais do filme, vemos Jit num workshop de voz. É-lhe pedido que se coloque imóvel em frente a Ang e o olhe nos olhos, enquanto tenta adivinhar os seus pensamentos. No filme, a voz é o elemento-chave para a conquista das identidades das personagens, assim como para a própria forma fílmica, uma vez que recuperando as suas vozes, as personagens recuperem o seu corpo próprio, a textura do seu ser, tornada qualidade de verdade ao transformar-se em afecto na tela.

Os grandes clichés narrativos são assumidos no filme, porém, são brilhantemente subvertidos. A realização do tailandês é como uma faca que vai raspando a camada mais à superfície até tornar visível o fundo do filme, a sua interioridade sensível, a única dimensão verdadeira.  Dançando entre o falso e o verdadeiro, entre a narrativa e as potências sensíveis, entre o estranho e o íntimo, “Aninsri Daeng” não é apenas um filme, mas uma aula de cinema. Pensar que trinta minutos de filme podem resultar num texto de 1400 palavras, sendo que a partir destas, muitas outras poderiam nascer, leva-me a valorizar a curta-metragem de uma forma bastante natural. É certo que, por vezes, a quantidade de palavras nem sempre corresponde a algo verdadeiramente substancial; porém, lembro-me de, no final desta curta-metragem, ter vontade de me levantar e sair a meio da sessão, por achar que a curta me tinha preenchido intelectualmente até ao meu limite, enquanto a minha sensibilidade, nostálgica, pedia-me para fechar os olhos e receber novamente os afectos que a tinham vivificado. Como numa igreja, permaneci sentado e em silêncio. E, enquanto a curta que acabara se ia prolongando dentro de mim, mantive o meu olhar voltado para o altar cinematográfico à espera que a próxima curta começasse…

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«Aninsri Daeng» – Descascar o falso até sentir o verdadeiro
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