Arqueologia do Cinema Brasileiro (Parte 1) – Os primeiros ciclos (Recife)

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O título deste artigo alude diretamente a uma passagem de São Paulo Sociedade Anônima (1965), em que o personagem Carlos caminha sobre o Viaduto do Chá, absorto em seus delírios próprios de um paulistano atormentado, enquanto ouve a si mesmo insistindo-lhe que a vida é um eterno devir que não nos leva a parte alguma, mesmo depois do custoso cumprimento das “cinquentas obrigações diárias”. Luiz Sérgio Person, autor desse tão esmerado solilóquio criticava a existência vazia de sentido numa metrópole desumana e desumanizadora, mas poderia também, de forma cifrada, estar se referindo à biografia do próprio cinema de seu país.

A História do Cinema Brasileiro é um palimpsesto que nem mesmo permite um consenso quanto ao seu início oficial. Foi mesmo Afonso Segreto quem inaugurou a produção cinematográfica no país, ao fazer belas tomadas do Rio de Janeiro na entrada da Baía da Guanabara, a bordo de um paquete francês batizado “Brésil”? (Tão romântico…) Ou teria sido o médico, advogado, juiz de paz, mágico e produtor de shows de variedades, Cunha Salles, quem primeiro criou um aparato para registrar fotografias em movimento, em terras brasileiras? Ele até protocolou um pedido de reconhecimento de patente com páginas e páginas de esquemas e descritivos da engenhoca que nunca foi vista concluída, acompanhadas de 24 fotogramas sucessivos de um píer cuja localização exata nunca saberemos. Também não há provas de que as tomadas de Segreto tenham sido exibidas, ou mesmo filmadas.

As duas lendas, contudo, mostram um quadro sintomático crónico. Nenhum país do mundo reconhece o nascimento de seu cinema a partir de uma filmagem, mas a partir da primeira exibição. Isto já apontava Jean-Claude Bernardet, crítico e professor da Universidade de São Paulo, em sua fundamental pesquisa tão respeitada pelas teses que lança em Cinema Brasileiro: Propostas para uma História (1979). Resumindo, o Brasil conseguiu a proeza de perder o bonde da evolução sustentável do cinema – não sem antes ter seu mercado loteado por distribuidoras internacionais – e continua correndo atrás de prejuízos há mais de 120 anos.

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Por exemplo, no país, os primeiros profissionais do cinema eram os chamados “cavadores”, que batiam às portas das famílias de cafeicultores, industriais e políticos em busca de “freelas”. Recebendo por metro de filme, esses mascates do cinema registravam festas de casamento, montavam álbuns de família com cenas domésticas da elite local e, se dessem sorte, conseguiam contratos mais longos para a produção de cinejornais financiados pelas instâncias públicas. Alguns cavadores passaram a usar o dinheiro arrecadado para reinvestirem em produções próprias, almejando uma carreira autoral na ficção, inspirados pelo que viam chegar principalmente de Hollywood. Como o mercado brasileiro de filmes já estava tomado e o filme nacional ainda era tacanho e amador, não restava outra alternativa a não ser se conformarem com a exibição de seus “filmes posados” (como eram chamados os filmes de ficção) em sessões ocasionais, para amigos, parentes e, eventualmente, nos horários vagos em salas cedidas por alguma boa alma proprietária de um cinema. Se por um lado não havia uma extroversão desses filmes para além das cidades onde eram produzidos, por outro, essa dificuldade fez nascer os “ciclos regionais”. E, entre os anos 1910 e 1930, muitas cidades por todo o país passou a ter seu grupo de cinegrafistas que agora se tornavam cineasta, produzindo com perseverança e idealismo. Graças a esses pioneiros, hoje temos verdadeiras relíquias do cinema brasileiro que nunca circularam amplamente em sua época, mas que sobreviveram para que hoje possamos montar o quebra-cabeças de nossa História.

O primeiro ciclo regional que logo nos vem à mente é o ciclo do Recife. A capital pernambucana assistiu a uma decadência severa no final do século 19 por conta da migração económica para os estados do Sul do país. Sentindo os efeitos do abandono, Recife teve de se reinventar e abraçou o cinema para isso. As produções realizadas naquela cidade buscavam mostrar ao público que Recife havia se tornado tão cosmopolita e moderna quanto São Paulo ou Rio de Janeiro. Produzido pelos italianos Ugo Falangola e J. Cabieri, Veneza Americana (1925) é um documentário (ou “filme natural”, como eram chamados os documentários à época) no melhor estilo das “Sinfonias das grandes cidades”. Exibia uma cidade que havia promovido uma revitalização urbana e uma modernização nos meios de transporte. Ao mesmo tempo, privilegiava as paisagens paradisíacas do litoral e o trabalho de pescadores e pequenos comerciantes, convivendo com grandes empresas que se instalavam na região. Por outro lado, havia ficções, também. Um dos mais lembrados é Aitaré da Praia (1925), de Gentil Roiz, que narra a vida de um jovem pescador, de vida humilde e noivo da mocinha ao lado de quem cresceu, numa comunidade pacata e tradicional. O conflito se estabelece com as transformações que o progresso traz à sua região, fazendo com que o rapaz passe a olhar para o mundo com outros olhos. Quando se apaixona por uma mulher sofisticada, que vem de uma cidade grande e de família burguesa, o jovem entende que aquela vida ao lado de pessoas simples e conformadas não lhe satisfaz mais. Estabelece-se, aí, a tensão entre os costumes locais e a modernidade que varre minorias.

Outro trabalho importante e, com certeza, polémico é A filha do advogado (1925), de Jota Soares, que retrata uma Recife agitada e pulsante enquanto nos mostra, mais uma vez, o embate entre pessoas vindas de longe para uma cidade grande, que destrói sonhos. É bastante comentada uma cena em que a personagem da jovem vinda do interior é violentada por um rapaz da elite local. Para o padrão da época, a sequência é ousada, mas, vista em perspectiva, já prenunciava a vocação do cinema pernambucano para a produção de obras polémicas e originais. Muitas décadas depois, já no momento da Retomada, os pioneiros pernambucanos seriam honrados com a chegada de nomes como Claudio Assis, Lírio Ferreira e, claro, Kléber Mendonça Filho.

(Continua)


Este introito é um fragmento de ensaio publicado no livro Cinefilia Crônica: comentários sobre o filme de invenção (2019), de Donny Correia, em sua segunda edição, revista e ampliada. O autor valeu-se de tal ensaio para esboçar esta Arqueologia do Cinema Brasileiro, que em breve terá sua edição própria. 

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