Numa predominância de cores muito suaves, os desenhos de Eléa Gobbé-Mévellec são como uma aguarela em movimento, uma escolha estética inesperada para o drama que apresentam, e que encerra uma das questões mais controversas no Médio Oriente: os direitos das mulheres.
Mas vamos por partes. Falamos de “As Andorinhas de Cabul”, um filme francês realizado pela já mencionada animadora em conjunto com a atriz e realizadora Zabou Breitman. Baseado no livro homónimo de Yasmina Khadra, conta a história de dois casais, o carcereiro Atiq e a sua mulher Mussarat e os professores destituídos Mohsen e Zunaira, e de como as suas vidas acabam por se cruzar quando Zunaira é levada para a prisão onde trabalha Atiq.
Em 1998, Cabul, capital do Afeganistão, levava já por dois anos o regime fundamentalista islâmico, instituído pelos Talibã depois de uma invasão ao país e consequente subida ao poder. Um regime que redefiniu o papel do homem e da mulher, obrigando os primeiros ao uso de barba e as segundas ao porte da burca, que fechou universidades, destruiu bibliotecas e chegou ao extremo de regular o tipo e cor de sapatos permitidos de calçar.
Apesar de ser um filme relativamente curto (ou talvez por isso mesmo), com uma duração de 87 minutos, nenhum destes pormenores históricos é descurado, estando muito presentes quer nos cenários como nos diálogos entabulados, inclusive por personagens secundárias. A cidade aparece-nos miserável, os prédios destruídos, as casas despidas de móveis. Velhos soldados amontoam-se pelos cantos e partilham histórias sobre a guerra. Numa praça pública, uma mulher é apedrejada até à morte ao som de uma ovação furiosa. Num café discute-se o papel da mulher, a possibilidade de descartar uma esposa quando esta deixa de servir o marido, quando deixa de cumprir o seu papel.
Os direitos da mulher são, afinal, um dos principais assuntos retratados neste filme. A mulher-objecto que não deve ser vista para não tentar o homem e é por isso enclausurada no segredo de uma burca, desumanizando-se. Não é por acaso que Tariq, cujo trabalho de sempre é guardar as criminosas, se tenha interessado pelo destino de Zunaira em particular; Zunaira a primeira a atrever-se a rejeitar a burca, que não passa afinal de uma prisão dentro de outra prisão. Vendo-lhe o rosto, ela volta assim a ser considerada enquanto pessoa, e Tariq sente de repente nas próprias costas o peso da sua sentença.
Mas “As Andorinhas de Cabul” vai um pouco além disso, tentando retratar como também o homem sofre as consequências deste papel social diminuto da mulher. Mohsen, por exemplo, sofre por não poder passear-se de mãos dada na rua com a sua apaixonada e, quando os dois discutem, o seu desalento é menosprezado pelos outros homens: “não te deixes rejeitar por uma mulher”, dizem-lhe. Assim, a restrição das liberdades das mulheres acaba por sabotar a própria relação que os homens têm com elas, levando a que sofram, eles próprios, de uma certa opressão.
Estas são, sem dúvida, questões sempre pertinentes de levantar, sobretudo quando ainda existem tantos países onde os direitos da mulher continuam a ser violados. Veja-se o caso da iraniana Yasaman Ayani, que no ano passado foi sentenciada a 16 anos de prisão por ter desafiado o porte do véu islâmico, e para quem a Amnistia Internacional continua a pedir a libertação. No entanto, parece-nos que a forma como o assunto é abordado nesta animação acaba por ser um tanto ou quanto superficial. Os diálogos são muito forçados, repetindo certos chavões que preconizam uma visão ocidentalizada sobre o papel da mulher nas sociedades islâmicas. A opressão sobre a qual se quer reflectir é mostrada de uma forma demasiado assumida nesses mesmos diálogos, demasiado consciente de si mesma. Sobretudo se compararmos essa mesma visão com o final do filme, e que nos leva a pensar se não haveria uma outra mensagem qualquer que o autor do romance queria passar e que ficou perdida na adaptação ao grande ecrã (spoiler alert!): é que se é a burca que oprime Zunaira, é essa mesma burca que a salva.
Estreado em Cannes em 2019, “As Andorinhas de Cabul” chega a Portugal em outubro para a Festa do Cinema Francês.