Foi o ano das mães. Desde “Um Lugar Silencioso” e o seu plano final incendiário de uma Emily Blunt recém-puérpera armada com uma espingarda, até à inqualificável interpretação de Toni Colette em “Hereditário”, chega, em jeito de remate, Sandra Bullock, como uma mãe com um instinto de sobrevivência insuperável.
A narrativa centra-se na jornada de Malorie Hayes (Sandra Bullock) e respetivos filhos por um mundo pós-apocalíptico, onde é mandatório utilizar uma venda ocular no exterior, sob pena de uma entidade indefinida levar as pessoas ao suicídio imediato. Bullock assume aqui um papel de mãe diferente do habitual, mostrando-se fria e insondável, privando os filhos de nomes próprios, os quais nomeia genericamente como “Rapaz” e “Rapariga”. Ainda assim, o seu instinto maternal pulsa ao longo de todo o filme, latente na sua incessante busca por um local que garanta a segurança da sua prole.
Outras personagens surgem ao longo da narrativa (todas aquelas a que um filme de terror tem direito): o senhor de alguma idade irascível que não confia em ninguém nem quer ser importunado (John Malkovich, um dos pontos altos do filme), a pessoa de etnia não branca que é a primeira a perecer do grupo, o casal improvável que inicialmente se detestou, o rapaz nervoso que acaba por inesperadamente ser uma peça fundamental para a sobrevivência de todos, a gordinha sensível, et cetera. Realço, contudo, a presença de aspetos distintivos, nomeadamente a substituição da figura paternal por um namorado jovem (Trevante Rhodes, mélico como em “Moonlight”).
Como aspeto menos positivo saliento a contribuição do filme para o estigma associado à doença mental. Sucede que os doentes mentais, por motivos que permanecem por esclarecer, são imunes à entidade sobrenatural que leva a maioria das pessoas ao suicídio. Apesar de risível, permanece uma premissa inocente. A questão agrava-se quando os doentes mentais se começam a agregar em gangues e a forçar os “mentalmente sãos” a cederem à suprarreferida entidade, levando inevitavelmente ao seu suicídio. É uma narrativa onde transparece a velha trope dos doentes mentais como agressores, e restantes pessoas como suas vítimas, que carece de veracidade epidemiológica e/ou científica.
Contudo, realço que “Às Cegas” (“Bird Box”) cumpre o seu propósito principal: entreter. Entremeado por cenas que levam a suspender a respiração, conduz o espectador a uma viagem de sensações ao longo do seu visionamento, que alternam maioritariamente entre expetativa e alívio. Tem sido comparado injustamente a “Um Lugar Silencioso”, sendo descrito como menos complexo e denso psicologicamente. Sucede que “Bird Box” é um bocado ingénuo de mais, e arrisca um final triunfante – condição que quase automaticamente o diminui dentro do género. A realizadora, Susanne Bier, chegou mesmo a mencionar em entrevistas que sempre sentiu algum descrédito pelos seus filmes, em particular no seu país natal, facto que atribui resolutamente à sua distinta tendência em pincelá-los com um tom de otimismo, que a própria considera vital manter e reiterar em cada obra. Sendo proveniente da Dinamarca, país de cineastas como Lars von Trier e Nicolas Winding Refn, celebrados pelo seu olhar sardónico e pessimista da sociedade, Bier rejeita essa visão e insiste em criar filmes despojados de cinismo, onde a esperança ocupa um papel central.
E é nesse sentido que “Bird Box” chega ao fim, desafiando aquela que parecia ser a sua metáfora definidora: a do sucessivo enjaulamento das personagens, quais pássaros em gaiolas, acabando por conduzi-las literalmente até ao interior de uma bird box onde, pela primeira vez, encontram segurança e liberdade.