Depois do sucesso internacional de “Tabu” (2012), Miguel Gomes volta a ter o mundo a seus pés com o surreal mundo de “As Mil e Uma Noites”. “O Inquieto” é o primeiro volume de uma trilogia que se completa com “O Desolado” (volume 2, estreia a 24 de setembro) e “O Encantado” (volume 3, estreia a 1 de outubro). A trilogia de “As Mil e Uma Noites” estreou na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes, onde foi aclamado pela crítica e pelo público e percorreu já outros grandes festivais de cinema internacionais, arrecadando distinções como o Prémio da Crítica Internacional (Fipresci) ou o prémio máximo da selecção oficial do Festival de Cinema de Sydney.
Miguel Gomes inspira-se na estrutura do livro “As Mil e uma Noites” para criar uma epopeia portuguesa sobre a crise de Portugal. Tal como no livro, o filme reúne uma série de contos que são narrados pela rainha Xerazade e todas as histórias começam por ser narradas da mesma forma: “escuta, ó venturoso rei, fui sabedora de que, num triste país entre os países…”. O método inteligente de Miguel Gomes para esta obra foi o ter reunido um grupo de jornalistas que investigaram durante um ano (agosto de 2013 a agosto de 2014) acontecimentos marcantes no país em toda a imprensa. O realizador percorreu o país de norte a sul para filmar os efeitos da austeridade na sociedade portuguesa, construindo um guião com base nessas histórias que foi recolhendo.
Em “As Mil e Uma Noites” Miguel Gomes é Xerazade, pois é a vida dele que está em risco, por ter abandonado a sua equipa do filme. Pois ele é também um realizador em crise, inquieto. Em “O Inquieto” o filme encadeia várias histórias que vão desde as manifestações de rua ao silêncio dos estaleiros de Viana do Castelo, passando pelos incêndios de Verão, pelo desespero de um desempregado, ou pela depressão e melancolia de um sindicalista.
O filme dilui-se de forma sublime entre o documentário e a ficção, entre o que é fantasia e o que é real. São estas as ferramentas com que Miguel Gomes molda esta obra, o que define o seu estilo, com momentos bastante surreais, como um governo e Troika que andam sobre camelos e um galo que fala, e outros momentos que são um retrato duro e real, como por exemplo os testemunhos comoventes de alguns desempregados. Por mais surreais que as histórias possam parecer, elas são um retrato real e comovente do nosso país, muitas vezes levados com um grande sentido de humor. O limite do que é surreal ou não é muito bem exemplificado com a história do galo que fala. O que é mais surreal, um galo que fala ou uma população que quer processar em tribunal e matar um galo por ser barulhento? Como é referido no filme, o galo madrugador liberta o primeiro grito de consciência, mas ninguém o quer ouvir. Não o deixam expressar-se.
Portugal vive um período de violenta austeridade, atormentado por um governo e uma Troika que empobrecem o povo português de forma intencional, ao serviço do capital financeiro internacional. E o realizador apresenta um ponto de vista crítico em relação a isso, traçando um retrato do Portugal real.
Este é um filme único e comovente de visualização obrigatória, hoje mais do que nunca. Faz-nos reflectir, ativa-nos a consciência, ficamos inquietos. Depois de vermos o volume 1, “O Inquieto”, ficamos com vontade de ver logo de seguida os restantes volumes. Esta é por ventura a mais promissora trilogia do cinema português, que é agora revitalizado por Miguel Gomes.
Realização: Miguel Gomes
Argumento: Telmo Churro, Miguel Gomes, Mariana Ricardo
Elenco: Cristina Alfaiate, Adriano Luz, Américo Silva, Rogério Samora, Carloto Cotta, Teresa Madruga, João Pedro Bénard, Joana de Verona, Luísa Cruz, Gonçalo Waddington
Portugal/2015 – Drama
Sinopse: Xerazade dá conta das inquietantes maldições que se abatem sobre o país : “Oh venturoso Rei, fui sabedora de que num triste país entre os países, onde se sonha com sereias e baleias, o desemprego propaga-se. Em certos lugares, a floresta arde noite dentro apesar da chuva que cai; homens e mulheres anseiam por lançarem-se ao mar em pleno Inverno. Por vezes há animais que falam embora seja improvável que sejam escutados. Neste país onde as coisas não são o que aparentam ser, os homens do poder passeiam-se em camelos e escondem uma permanente e vergonhosa ereção ; aguardam pelo momento da coleta de impostos para poderem pagar a um certo feiticeiro que … “. E vendo despontar a manhã, Xerazade calou-se.