“La grande difficulté, c’est que tout art est abstrait et en même temps suggestif. Il ne faut pas tout montrer, quand on montre tout, il n’y a pas d’art, l’art va avec la suggestion. La grande difficulté dans ce cinématographe, c’est justement de ne pas montrer la réalité. Le maximum, l’idéal, serait de ne rien montrer du tout mais ce n’est pas possible. Il faut donc montrer les choses sous un angle, un seul angle qui évoque tous les autres angles mais ne pas tout montrer les autres”. – Robert Bresson, citação de uma entrevista de 1966.
Balthazar é um burro cuja vida acompanhamos desde que nasceu, praticamente, até aos seus últimos dias. O enredo é fácil de explicar, mas tratando-se de um filme de Bresson, há mais do que se vê à superfície. O tema da religião é central nesta obra, bem como em quase toda a filmografia do cineasta francês. O foco em filmar o corpo, e em especial nas mãos, outra característica pela qual Bresson é notório, também está presente neste Balthazar” (“Peregrinação Exemplar”). Há quem diga que um realizador faz apenas um filme durante a sua vida, mas que o corta e oferece em instalações cinemáticas aos espectadores, durante um período de tempo. No caso de Bresson acredito que é mesmo verdade.
Apesar de ser um animal, Balthazar possui todas as características encontradas numa entidade santa. É um ser que faz lembrar Cristo, ou uma figura relativamente próxima e inspirada nele, à semelhança, por exemplo, do Príncipe Liév Nikoláievitch Míchkin, herói do livro “O Idiota”, de Fiódor Dostoiévski. Bresson admitiu numa entrevista que a ideia para “Au Hasard Balthazar” lhe surgiu ao ler uma passagem do referido livro, em que o Príncipe Míchkin fala do seu carinho especial, no que toca aos animais, pelo “burro humilde”. Esta comparação de Balthazar com Cristo pode ser feita ao longo do filme, em diferentes momentos: no início, quando o burro é novidade, as crianças colocam-lhe uma coroa de flores (em contraste com a coroa de espinhos, uma referência bíblica); no final, é rodeado por ovelhas (quem nunca ouviu a palavra “rebanho” numa ida à igreja que atire a primeira pedra); no filme em geral, comparando o sofrimento e tormentas tanto de Cristo como de Balthazar.
Conhecido pelo uso de elipses, Bresson deixa o espectador preencher os espaços “vazios” narrativamente e retém o máximo de informação possível, o que obriga a um trabalho extra de quem vê os seus filmes. Assim, o francês convida-nos a ser parte activa na obra por ele criada. Basicamente, uma elipse em cinema consiste na compressão do tempo, tornando dias, meses ou anos em segundos, sem ser preciso uma explicação alongada (ou no caso de 2001: Odisseia no Espaço, provavelmente a elipse mais conhecida na sétima arte, milhões de anos passam de um momento para o outro, sem que seja precisa uma ou mais cenas de exposição).
Este recurso, muito utilizado ao longo de toda a obra de Robert Bresson, vai de encontro áquilo que é a sua maneira de ver o “cinematógrafo”, termo que ele usa em vez de “cinema”. O francês é conhecido por ter marcas autorais e uma visão muito próprias sobre a execução de um filme, bem como aquilo que para ele deve ser a sétima arte. As elipses remetem para uma economia narrativa, o “mostrar apenas o que é essencial” e nada além disso. Daí a citação, em francês, que abre este artigo, onde Bresson diz (mais ou menos) que “(…) a arte está na sugestão. A grande dificuldade do cinematógrafo é justamente não mostrar a realidade (…) Então têm de se mostrar as coisas de um ângulo, um ângulo que evoque todos os outros, sem os mostrar”.
Outro ponto onde se distingue dos demais realizadores é na preferência por atores não profissionais e, no lugar da palavra “atores” usava a palavra “modelos”. Segundo o próprio, o que lhe interessa não é aquilo que os “modelos” mostram, mas sim aquilo que escondem. Os “atores” são, na sua opinião, pessoas, que se projectam na própria personagem, ao mesmo tempo que estão a ver a sua representação interiormente. Além disso, possuem truques e gestos automatizados, que são falsos, e o que Bresson quer é captar é o “charme” da vida quotidiana, não os enganos da representação. Por este motivo, o realizador chegava a repetir cenas dezenas de vezes, até drenar toda a “falsidade” emocional do “modelo”, até que as palavras fossem proferidas sem qualquer tipo de sentimento ou técnica de atuação.
Sendo-se ou não fã dos métodos usados por Bresson e da sua visão sobre a sétima arte, a verdade é que o francês sobreviveu ao maior crítico de todos: o tempo. Deixou vários clássicos do cinema, como este Balthazar ou “Journal d’un Curé de Campagne” (1951), “Pickpocket” (1959), “L’Argent” (1983), entre outros. Foi dos realizadores mais aclamados pelos colegas de profissão – quase todos os realizadores da Nouvelle Vague o admiravam (Godard chegou a dizer que Bresson estava para o cinema francês como Dostoiévski para a literatura russa ou Mozart para a música alemã). Outros como Andrei Tarkovski (que disse apenas estar interessado na opinião de duas pessoas, Ingmar Bergman e Robert Bresson), ou Michael Haneke (cujo filme favorito é este Au Hasard Balthazar) também exprimiram a sua admiração.
Por fim, é ainda de destacar a interpretação de Anne Wiazemsky, que se estreou neste filme como Marie, uma jovem cuja vida, tal como a de Balthazar, dá voltas e voltas, terminando com um desfecho infeliz. Uma interpretação brilhante, que lhe viria a valer uma carreira como atriz (e não como “modelo”), tendo deixado o cinema para enveredar por uma carreira como escritora. “Au Hasard Balthazar” é um daqueles filmes que ficam connosco durante muito tempo, um filme que, apesar de aparentemente simples, nos surpreende pela sua complexidade, e um filme devia ser visto por todos os cinéfilos, admiradores ou não do “cinematógrafo” de Robert Bresson.