O cinema é um processo de destilação que separa o verdadeiro do falso. Todos os seus meios e instrumentos cooperam no sentido de fazer aquecer uma máquina gigantesca para que, da pluralidade dos vapores criados, possa surgir uma única gota de beleza. Foi este o sentimento com que fiquei ao ver “Babylon”, de Damien Chazelle. Se, de uma certa forma, ele consegue mostrar esta ideia do cinema como processo de destilação, ao seu filme parece ter faltado o trabalho suficiente para que dele pudesse surgir essa pequena centelha pungente que começa a pairar em alguma parte do ecrã.
O filme começa com uma engenhosa manobra de distracção para o espectador. Tal como o elefante é usado para distrair os festivaleiros da saída da mulher que colapsou num dos quartos da mansão, a cena da festa é tão só uma montra para o virtuosismo técnico do realizador. Só assim percebemos a necessidade de repescagem das cenas desse pseudoepílogo para fechar o filme, naquilo que é uma tentativa, extremamente forçada, de o tentar justificar. As próprias lágrimas que caem dos olhos de Manuel (Diego Calva) carecem de um sentido mais forte. Por entre as muitas imagens dessa montagem final, vemos os planos de “A Paixão de Joana D’Arc”, de Dreyer e a reinterpretação que lhe deu Jean-Luc Godard, em “Viver a sua Vida”, onde o rosto de Anna Karina entra numa secreta comunhão de intensidade afectiva com o de Maria Falconetti, partilhando a premonição de um fim que se aproxima. A única causa afectiva que poderemos ler nas lágrimas de Manuel é uma tentativa de, através de um Efeito Kuleshov, vermos nelas uma reacção melancólica muito difusa e ambígua, perante o advento de um novo regime de representação. Esse em que o ecrã prescinde da representação no seu sentido narrativo para dar lugar ao ecrã-superfície, que o “eleva” ao seu sentido estético. E é nesta suposta elevação onde acredito que resida essa ambiguidade melancólica de Manuel: por um lado, podemos olhar para os exercícios de infinitização da montagem como o alcance de um novo potencial estético do cinema; por outro, é possível ver nisso um excesso de intelectualização que leva a uma perda de uma emoção que só é alcançada pelo poder narrativo e de fabulação.
Retirando esse epílogo que Chazelle martelou no início do filme – sacrificando o primor nos seus acabamentos -, o filme começa verdadeiramente a partir da cena em que Manuel tem contacto com a loucura do plateau do “Kinoscope”, na era do cinema mudo. (Pelo menos é nesse instante em que o meu corpo – antes enterrado na cadeira, paradoxalmente entediado em meio a tanta festa, no fundo e na forma – se ergue na cadeira e começa realmente a olhar para o ecrã.). É nesse momento que vemos a verdadeira festa; as engrenagens da máquina frenética e desgovernada de Hollywood a aquecer até ao absurdo, culminando numa explosão caótica. Naquelas escarpas soalheiras, as câmaras colhem imagens até ao último raio de sol. No final, juntam-se toda a colheita, e eis que a montanha – a arder e a desabar por todos os lados – inexplicavelmente conseguiu dar à luz uma borboleta. Nessa borboleta está a essência do cinema; ela representa o vento que sopra para dentro do plano. que vem contaminar a sua execução racional com um frescor vindo da própria vida. Mas, a pergunta que nasce é: esses fins tão fotogénicos, que nascem do lado de lá da câmara, justificam os meios desumanos, que vão acontecendo do lado de cá? Existem hoje cineastas – e um deles bem familiar nosso – cujo cinema não nasce de nenhuma visão romantizada de engajamento da arte pela arte, ou de um engajamento social leviano e abstracto, mas tão só de uma ética que assenta num princípio de trabalho: fazer cinema é um “trabalhar com” e não um “trabalhar a partir de”. Porque todo o “a partir de” implica percorrer um caminho onde avançar significa abandonar e descartar os vários pontos que só serviram como partida. E se a identidade dos velhos actores do cinema mudo foi moldada a golpes de holofotes, que lhes alimentavam um narcisismo muito profundo, foi por esse caminhar, impiedoso e bulímico, da máquina do cinema, tudo engolir, num dado instante, e tudo descartar, no instante a seguir.
Li, em alguns textos que circulam pela internet, a tentativa de estabelecer paralelos entre um filme como “A Doce Vida” e “Babylon”. Chazelle e Fellini estão em universos tão distantes que nem se chegam a tocar; e se o cinema do primeiro consegue comunicar com o segundo será enquanto simulacro. Para Fellini, o cineasta – penso em Guido Anselmi (Marcello Mastroianni), em “Oito e Meio” – aparece assoberbado pela dimensão da sua pretensiosidade, para receber a lição mais essencial: descobrir que a verdade do cinema está sempre antes de qualquer idealização ou projecção romantizada; porque ele está sempre muito perto: na constelação humana das relações afectivas que fazem o cineasta ser quem é. A verdade do cinema felliniano é que a humanidade vem sempre antes do próprio cinema, e que este está sempre ao serviço do primeiro. O filme de Chazelle consegue, dentro da sua artificialidade e mostras de virtuosismo, dar a ver as metamorfoses da verdade do cinema, nas suas diferentes eras; ou como essa pequena centelha de cinema está nessa borboleta que vem pousar suavemente nas costas do plano. Mas, essa presença só aparece quando, entre o controlo e artificialidade, se deixa uma pequena janela entreaberta, abrindo essa misteriosa frincha, por onde o vento começa a soprar. E “Babylon” vive de um artificialismo claustrofóbico, que acaba por confinar o filme dentro de si mesmo. Só vemos aquilo que é projectado nas suas fachadas; e se não conseguirmos entrar na casa, também não sentimos o seu frescor. O filme é uma vistosa mansão, mas onde não existem portas ou janelas…