“Barbie”, de Greta Gerwig e Noah Baumbach, mostra ser um dos filmes mais procurados do verão (ou até do ano) com um sucesso de bilheteira que ronda já a casa dos milhões de euros. A reinvenção cinematográfica do brinquedo mais famoso da Mattel, procurado por miúdos e graúdos, mostra estar a criar um burburinho na internet sobre o seu possível cunho social feminista e transformador das relações de género. Na verdade, o sucesso do filme mostra ser inquestionável – os números provam isso – porém, a questão que aqui coloco, é se um filme sobre as bonecas Barbie, realizado por uma mulher, será necessariamente feminista. Tendo esta produção reconhecido a existência do patriarcado faz da Barbie um filme feminista? Vejamos.
O filme conta uma história simples. Protagonizado por Margot Robbie, que representa o estereótipo de feminilidade exagerada e acessória da Barbie, a história desenrola-se num mundo colorido e quase perfeito onde não há lugar para tristeza, depressão ou dúvidas. Num mundo que é simultaneamente um misto de fantasia e de plástico, onde as bonecas podem ser tudo o que quiserem (advogadas, médicas, Nobel da literatura ou até presidentes), bonitas, inteligentes, simpáticas, sempre alegres e sempre perfeitas, o filme mostra a pretensão da boneca em encorajar as raparigas a aspirar algo que não apenas a maternidade, mas a ambição de uma carreira e vida independente. Esta poderá ser, ainda que numa realidade fantasiosa, a primeira leitura feminista que o filme nos oferece.
Numa criação distópica e exagerada, Barbieland, parte com a mensagem inicial de que “graças à Barbie, todos os problemas do feminismo e da igualdade de direitos foram resolvidos”. Neste mundo distópico e harmonioso onde há barbies plus size, com deficiência, onde a sua presidente é uma mulher negra (Issa Rae) e o Supremo Tribunal é constituído apenas por mulheres, onde a respeitada médica é uma mulher trans (Hari Nef), os homens (Kens) mostram ocupar um lugar acessório neste mundo chefiado por mulheres. O filme mostra o desejo em acolher a diversidade de experiências no feminino embora que exageradamente desajustadas do mundo real.
Vendo-se confrontada com preocupações e inseguranças existenciais que só poderiam ser vividas por pessoas reais, a Barbie (Margot Robbie) é encorajada a fazer uma viagem de auto-descoberta até ao mundo real, no qual o Ken (Ryan Gosling), obcecado por ter a sua atenção, a acompanha nessa jornada de auto-descoberta. Porém, os seus caminhos separam-se. Enquanto a boneca descobre a realidade do patriarcado, Ken encontra nos privilégios da masculinidade hegemónica a solução para os seus problemas existenciais. Vendo no patriarcado uma forma de conseguir a atenção e o amor de Barbie, Ken decide mudar a constituição de Barbieland e instituir a Kenland, um golpe que inverteria o mundo perfeito do matriarcado de Barbie num lugar onde o feminino é acessório ao poder masculino.
A segunda mensagem feminista do filme poderá residir na desconstrução do conceito de “ser homem”, deixando subentendido que, quando necessário, os homens podem agir ignorando as regras, considerando-se acima da lei, que não devem chorar nem expressar tristeza, solidão ou dor, que devem ser duros, disfarçar os seus verdadeiros sentimentos, aprender a reprimir o seu “eu” para manter ou alcançar uma posição de controlo e admiração social.
Barbie vê-se confrontada com uma guerra binária de sexos em que pelo discurso de Gloria (America Feera) – uma mãe que encontra nas suas antigas bonecas uma terapia para os desafios de ser mulher do mundo real -, a coragem e empoderamento para lutar e vencer a submissão que a dominação masculina traria aquele mundo fictício. Quanto a isto note-se a alegoria criada em torno da relação de sororidade desejada pelos feminismo de segunda e terceira vaga assim como da reflexão em torno da importância da união das forças num momento em que o movimento feminista mostra ser atravessado por divisionismos e formas de exclusão.
Ao discutir o género nos seus filmes, tais como os nomeados aos óscares “Lady Bird” (2017) e “Little Woman” (2019), Gerwin parece por si só criar uma expectativa quanto à mensagem e posição política deste filme. Escolhendo passar uma mensagem, entre muitas que poderiam ser oferecidas, sobre o desafio das feminilidades e masculinidades hegemónicas, não podemos cair na tentação de achar que este é um filme profundo sobre as plurais experiências que dão significado ao “ser mulher”.
Este não é um filme que capta a totalidade das lutas e reivindicações feministas. Não desconstrói as interseccionais relações de género, classe e raça. Consegue ainda omitir as sexualidades não heterossexuais e reforçar o caráter essencialista e biológico do acto performativo em tornar-se mulher – mensagem que fica explicita no desfecho do filme. Ou seja, o filme em si mostra lacunas no que toca à criação de uma mensagem e crítica feminista profunda e plural. Ainda assim, de forma mais ou menos cliché ou exagerada deixa claro sobre os desafios que premeiam as expectativas e estereótipos de género, sobre o empoderamento feminino assim como as ambições capitalistas de uma fábrica de brinquedos (a própria Mattel) dirigida apenas por homens.
Este mostra ser um trocadilho inteligente. Através da ficção, do caricaturar de problemas reais por um mundo fantasioso, da sátira apontada a problemas históricos de assimetrias de poder, a Mattel mostra o seu interesse em transformar e reforçar o imaginário coletivo em torno da boneca mais famosa do mundo. Através de uma estratégia de comunicação forte, do recurso ao marketing cor-de-rosa, mostra conseguir chegar a diferentes públicos, miúdos e graúdos, apaixonados pela oportunidade de ficar na Casa de Sonho Malibu da Barbie, das experiências de viagens ou da cosmética, roupa, entre outros milhentos produtos criados para alimentar a trend do mundo imaginário da Barbie.
Gerwig não é a primeira nem a única voz feminista no mundo do cinema. Esperar que o seu trabalho capte a totalidade das questões em torno do que significa ser-se mulher – discussão problemática dentro dos meios feministas ativistas e académicos- mostra ser não só insensato como desmerecer o seu trabalho.