“Benedetta” – O grande trompe l’oeil

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“Benedetta” estreia na plataforma de streaming Filmin, após um percurso fora do cinema um pouco atribulado – esteve prevista a sua estreia no grande ecrã em 2019 e 2020, mas só em 2021 veria o escuro da sala.

 

No presente pelo qual se caminha, seria de julgar que o choque através das artes já não estaria muito ao alcance de qualquer um, tendo em conta a miríade de estímulos e a vulgarização visual de temas que em tempos já foram proibidos – e não há tanto tempo assim.

“Benedetta” veio provar que ainda há espaço para que afrontar a religião ainda seja motivo para alarido, especialmente porque neste caso a religião surge de mãos dadas com uma sexualidade que ultrapassa a mera relação conventual escondida entre um senhor poderoso e uma freira.

Tudo no mais recente filme de Paul Verhoeven sugere um teste aos sentidos, uma provocação gratuita, mas, mais importante que isso, um teste à inteligência e à capacidade de ver para lá da artificialidade a que o olho obriga.

Olhar para o supostamente polémico “Benedetta” e lembrá-lo como o festival de sexo, violência e comédia com que muitas vezes é descrito, é cair na armadilha que o realizador holandês deixou distraidamente nos corredores do convento onde Benedetta vive.

O espectador vai com toda a certeza ou cair na armadilha e sentir-se frustrado ou cair na armadilha e, apesar disso, não deixar de admirar o vivaz exercício crítico que reside em “Benedetta”.

Baseado na história verdadeira de Benedetta Carlini, a freira italiana do século XVII que viveu num convento em Pescia, o filme mostra tanto a sua ascensão ao poder na hierarquia monástica quanto a sua perspectiva enquanto mulher religiosa que embarca num relacionamento com outra mulher.

Decididamente, “Benedetta” representa fielmente, tanto quanto possível, o pano de fundo político, religioso e social daquela época e naquele contexto. O convento, note-se, não é um local de salvação pio, de assistência social, mas o sítio onde apenas entram as raparigas cujos pais podem pagar a entrada.

A abadessa (Charlotte Rampling), idosa, vê-se afrontada pela notoriedade de Benedetta, cujas visões de Jesus Cristo vão progressivamente tornando-a cada vez mais apetecida pela hierarquia da Igreja por atrair mais fiéis e, por isso, mais fundos.

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Charlotte Rampling como abadessa

Por outro lado, também entre as restantes freias se vai gerando algum mal-estar, tanto pelo espectáculo das visões e dos estigmas de Benedetta, que se vão tornando cada vez mais expressivos, quer porque muitas delas não acreditavam na veracidade das visões ou mesmo que a freira falava através de Jesus.

À época, muitas foram as interrogações acerca de se aquelas possessões seriam divinas ou malignas e essa divisão não parece ter sido sanada, mantendo-se até ao final da vida de Benedetta.

O que o filme faz, na realidade, é retratar esse dia-a-dia o mais fiel possível, mesmo tendo em conta a generalidade da História da época, e depois deliciar-se a expor a devassidão e carisma de Benedetta de uma perspectiva estranhamente neutra.

Curiosamente, essa exposição é feita de modo a que aquela personagem, divisiva e polémica na altura e ainda hoje, surja perfeitamente neutra e impassível e esse trabalho de Verhoeven, muito graças ao talento da actriz belga Virginie Efira, é admirável.

Benedetta em momento algum admite culpa, mentira ou verdade e se alguma vez foi um embuste ou uma santa, isso ficará para sempre em dúvida. Não saber exactamente o que pensar sobre ela talvez seja o que mais causa frustração para quem assiste ao filme, por isso não deixa de ser uma dupla provocação.

Por outro lado, a sua sexualidade, cada vez mais visível e causadora de mais visões e sonhos que passam também a conter a componente erótica, também não parece assumir a importância que a reacção que algumas franjas de público faz crer.

Nos tempos que correm, quando já quase tudo se disse e fez, a cena que tanto deu que falar, entre Benedetta e Bartolomea (Daphne Patakia), é apenas um pormenor entre tantos outros no filme e não parece ser aquilo a que Verhoeven mais dá importância.

O que está em causa em “Benedetta” é o quanto a dúvida e o carácter diluído dos homens e das mulheres é um dado adquirido desde tempos imemoriais. Se alguns tentam a definição, a aura bifurcada que permanecerá sobre Benedetta é a prova de que a volubilidade humana é uma constante.

Virginie Efira (Benedetta) e Daphne Patakia (Bartolomea)
Virginie Efira (Benedetta) e Daphne Patakia (Bartolomea)

O controlo sobre a mente e, sobretudo, o corpo, que a Igreja Católica tem exercido em todos estes séculos, é apenas mais uma forma de controlo sobre a vontade humana, um mecanismo de poder e ambição.

É essa a Igreja que se encontra em “Benedetta”, mas ao mesmo tempo também o poder que a crença de cada indivíduo tem no efeito colectivo, de tal modo que a divisão nas opiniões tanto desenha uma Benedetta santa quanto profundamente devassa e mentirosa.

Se muitos pensavam que era o demónio que falava através de si, outros acreditavam piamente que a coincidência de a peste negra nunca ter assolado Pescia era um milagre atribuível à Benedetta.

As crenças, mais do que aquilo que o olho vê (e aqui, mais do que ouvidos, as paredes têm olhos), são determinantes tanto para a atribuição do estatuto de santa a uma mulher pecaminosa como para a atirar para a fogueira.

 Não pode ainda ser esquecida a maneira como as mulheres eram vistas nesta época e, embora muito tenha mudado desde então, ser mulher ainda é uma condição em muitos contextos.

Benedetta é uma pessoa, mas é, acima de tudo, uma mulher e as mulheres sempre foram dadas a histerias, a possessões, nem sempre são dignas de crédito e a maior parte das vezes eram apenas bruxas. O que podia criar um santo num homem, numa mulher podia determinar o hospício ou a definitiva castração social.

A natureza sexual de Benedetta, que no filme não parece ser determinante e é apenas mais uma característica entre tantas, não se sobrepõe completamente aos interesses da poderosa hierarquia da Igreja, mas não será porque o relacionamento entre duas mulheres, à época, estava tão pouco documentado que nem era concebível?

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A condição feminina e o lesbianismo não foram impedimento para a progressão na carreira de Benedetta e ainda hoje, mais do que uma afronta, esses elementos podem ser muito mais determinantes para a invisibilidade social do que para a definitiva castração violenta.

Subtilmente, Verhoeven faz muitas mais perguntas em segundo plano do que em primeiro, onde o espectador vai estar, com toda a certeza, muito mais focado. Quase que pode sentir-se uma espécie de satisfação jocosa por se estar em final de 2021, na altura em que o filme estreou em Cannes, e ainda haver tanta preocupação com uma cena de que quase toda a gente já falou, mas que aqui não se esmiuçará.

A intenção era essa e foi tremendamente bem conseguida porque “Benedetta” tem essa grande capacidade de bipolarizar, ainda hoje, de desagradar, de provocar, mas traz algo admirável que é a capacidade de não ser tão óbvio quanto se quer fazer passar.

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“Benedetta” – O grande trompe l’oeil
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