Berlim 2019: O horror! O horror!

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Foi no sábado à tarde que o chão estremeceu em Berlim. Faltava pouco mais de meia hora para o início do filme, mas as duas sessões de imprensa de “Der Goldene Handschuch” já estavam completamente esgotadas. Uma multidão aglomerava-se nas escadarias do Cinemaxx para ver, entre empurrões e um insulto aqui e ali, a estreia do novo filme de Fatih Akin. A ironia do episódio veio revelar-se depois, quando essa mesma imprensa que se acotovelava momentos antes, abandonaria a sessão minutos mais tarde, em estado de choque. Estava instalado o caos.

Fatih Akin chacoalhou a competição em Berlim com o seu gore negro e fedorento; para o azar de alguns pudores (e estômagos) mais sensíveis, e foi o assunto do dia numa Berlinale que andava adormecida. Estamos na Hamburgo dos anos 1970 e esta é a história verdadeira do serial killer Fritz Honka, um homem com um aspeto meio Frankenstein, meio Leatherface, que atraía mulheres e prostitutas ao seu apartamento para depois matá-las esquartejando os seus corpos. O “Goldene Handschuch” do título (ou Golden Glove em inglês) é o nome do bar, que por sinal ainda existe, no bairro de St. Pauli, onde o rapaz encontrava as suas vítimas e as trazia para casa.

O horror! O horror!

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Akin abre o filme com um plano completamente aterrador. Honka, de cuecas, tenta colocar o que parece ser a sua primeira vítima, que está nua, dentro de um saco de plástico. Depois de alguns minutos debatendo-se com a tarefa, resolve mudar de tática e pega num serrote para começar o desmembramento da pobre mulher. Ele então mira no pescoço da vítima e a câmara afasta-se, como se nos quisesse poupar da pornografia que vem logo a seguir. No entanto, tudo o que não se vê, mas se ouve, é de causar a mais terrível repulsa. Logo no início, o realizador traça uma linha clara: ou nós estamos com ele ou o perdemos de vez.

Foi há 15 anos que Akin trouxe para casa o Urso de Ouro pelo seu “Head On – A Esposa Turca” e foi aí que se iniciou uma badalada carreira nos festivais de cinema mais importantes do mundo, como Cannes e Veneza, de onde arrecadou prémios pelos seus filmes seguintes. Com “Der Goldene Handschuch” ele parece já não se importar com a aprovação da intelligentsia cinéfila e esse ponto de ruptura com o cânone estabelecido deu uma carga inovadora ao seu cinema. Akin foi rechaçado pela maioria da imprensa após a sessão do filme, que o acusou de “fetichizar” a violência. O filme tem várias cenas onde mulheres são brutalmente agredidas, mutiladas e escravizadas vezes sem conta. Num festival que abraçou a causa do #metoo de forma tão determinada, era natural que os ânimos se acirrassem.

Mas sejamos justos: “Der Goldene Handschuch” é um filme divertidíssimo, de um humor negro e doentio como nunca se viu nos filmes de Akin, mas que nunca chega a ser suficientemente kitsch para poder ser chamado de guilty pleasure. Para além disso, o filme não cai na tentação de humanizar a personagem ou de tentar justificá-la psicologicamente; “todos nós sabemos que uma mente doentia como esta provavelmente é o resultado de uma série de abusos, de todas as formas, mas eu não estava interessado nisso”, defende-se o realizador na conferência de imprensa. No entanto, há um único momento no filme, quando o irmão falastrão aparece para uma visita surpresa, e aí ficamos a saber um pouco mais do seu passado e da única pessoa com a qual ele parece desenvolver algum tipo de empatia.

Mas Akin deixa-se ficar por aí, e mergulha-nos mais uma vez no abismo desta mente perturbada, sem nunca apelar para maniqueísmos fáceis, ou a correr o risco de “glamourizar” a masculinidade tóxica, para usar um termo tão em voga, de um indivíduo que manifestou a sua misoginia da forma mais brutal possível. A posição que se cobra de Akin é legítima, mas também o é a sua argumentação de que não é preciso explicitar o seu repúdio para que ele se faça presente.

É muito improvável que este filme maldito saia do festival com qualquer prémio nas mãos, mas se o júri de Juliette Binoche for tão subversivo como foi o de Tom Tykwer do ano passado, sairemos daqui com um sorriso maroto no rosto.

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