Berlim 2023: um palmarés surpreendente que deu o urso para o documentário “Sur L’Adamant”

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Ao contrário do que previam todos os palpites nos últimos dias da Berlinale, o júri presidido por Kristen Stewart surpreendeu toda gente ao dar o seu prémio máximo ao documentário francês “Sur L’Adamant” de Nicolas Philibert. O prémio de interpretação foi para a pequena Sofia Otera, de 8 anos, que entrou para a história como a pessoa mais jovem a receber um prémio nesta categoria.

A 73.ª edição da Berlinale chegou ao fim no último domingo e surpreendeu a todos com um palmarés que gerou muito tema de conversa, indo contra todas as previsões. Desde o início da semana passada, quando a segunda parte do festival se deu início, as bolsas de apostas começaram a pipocar. Como é habitual todos os anos, se tentava adivinhar o que o júri internacional iria premiar no sábado à noite no meio de uma seleção onde poucos filmes realmente chamaram atenção. Alguns até sugeriram que a escolha da presidente Kristen Stewart para o programa do Young at Heart (uma retrospectiva de filmes sobre coming of age escolhidos por várias personalidades do cinema para o programa da Berlinale) o  “Amigas para Sempre” de 1995, seria uma pista para se chegar nesta lista dos premiados.

No entanto só quando presenciamos o júri internacional num evento paralelo do projeto Berlinale Talents, que tivemos uma pequena pista do que seria este palmarés. Meio que sem querer, Stewart revelou que cada um deles tinham gostos “completamente diferentes” uns dos outros e ainda acrescentou uma brincadeira com Radu Jude dizendo que o realizador romeno “tinha muitas opiniões”.

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Talvez isso tudo ajude a explicar a escolha do prémio principal para o documentário francês Sur L’Adamant” que causou surpresa até ao seu realizador Nicolas Philibert. No palco, e em choque, ele disparava contra o time estelar de jurados “vocês ficaram todos loucos?”.

Apesar de o júri de Stewart ter feito justiça a alguns dos projetos mais interessantes do programa deste ano, como o celebrado prémio do júri a João Canijo ou a Hélène Louvart pela fotografia atordoante de “Disco Boy”, a escolha do documentário francês pareceu um veredito chegado em forma de um compromisso, quase como se esta fosse a única solução encontrada em comum acordo entre eles. Só isso explicaria coisas tão inconsistentes como o prémio de argumento a “Music”, de Angela Schanelec ou melhor realização para Philippe Garrel por “Le Grand Chariot”.

Mas o melhor momento da noite foi quando a pequena Sofía Otero, de apenas oito anos, foi anunciada como a melhor performance do festival pelo seu papel como uma menina trans em “20.000 Espécies de Abelhas”. Sem conseguir segurar as lágrimas e visivelmente nervosa com a situação, ela fez o discurso mais emocionante da noite agradecendo a cada um dos membros da sua extensa família.

A beleza transcendental de “Sur L’Adamant”

“Sur L’Adamant” se passa todo dentro de um barco atracado no rio Sena, no centro de Paris, e que funciona como uma instalação para doentes mentais. O barco é um porto seguro para aqueles que muitas vezes são considerados “loucos” e assim, permitindo que estes indivíduos desenvolvam os seus interesses artísticos, como a música ou a pintura, e também participem em outras atividades como atender clientes no pequeno Café improvisado dentro do barco.

O filme de Philibert não só era o único “alien” da competição, como também enfrentou vários obstáculos, como ter sido exibido nos últimos dias do festival, o que limitou o seu público, ou ter recebido muitas críticas medianas desde a sua estreia. Para além disso, o filme faz parte de uma linha de documentário que não está muito na moda nos festivais, onde ideais conceituais dão mais protagonismo que o seu tema principal. Veja-se o caso de “Iron Butterflies” por exemplo, um muito interessante documentário no programa deste ano sobre o abate do voo M17 da Malaysia Airlines em 2014 no leste da Ucrânia. Ao mesmo tempo que o filme elaborava uma investigação reveladora sobre o acidente, tentava forjar um aspecto visual “artsy” como dispositivo narrativo para explorar outros conceitos filosóficos, resultando numa certa falta de empatia e conexão com as pessoas nele documentadas. 

O documentário de Philibert é o oposto disso tudo. É um filme que acredita no poder da sua honestidade como a força que lhe dá movimento. É um filme que tem no centro da sua narrativa um desejo imenso de compreender o outro e de nos confrontar com o que consideramos inadequado, mas é também um filme sobre o poder transformador da arte e do cinema. Um dos personagens mais interessantes, um senhor que parece sofrer de transtorno bipolar, acredita piamente ter sido a inspiração a um dos personagens de “Paris, Texas”, mas que o “malandro” do Wim Wenders nunca teve coragem para admiti-lo. Em outro momento eles tentam organizar uma mostra de cinema no barco (um filme por dia) no qual todos podem sugerir filmes e já no final, quando vemos o programa anunciado, alguns dos filmes incluem o “8½ “ de Fellini ou o “Através das Oliveiras” de Abbas Kiarostami.

O reconhecimento a “Sur L’Adamant” chega mais de 20 anos depois do seu aclamado Ser e Ter colecionar dezenas de prémios pelos festivais pelo mundo. O documentário de 2002 acompanhava a rotina de um infantário numa comunidade no interior da França durante todo um ano escolar e o seu dedicado professor, Georges Lopez, que mostrava paciência e dedicação no trato com aquelas crianças.

Além disso, o urso de ouro a Philibert dá continuação a uma tendência dos grandes festivais europeus e vem logo depois de Veneza ter também atribuído o seu prémio máximo a um documentário, o “All The Beauty And The Bloodshed” de Laura Poitras, sobre a crise dos opiáceos nos Estados Unidos.

“Sur L’Adamant” era o único documentário da competição em Berlim, assim como o filme de Poitras foi o único na competição em Veneza. Isso gerou na imprensa alemã algumas críticas ao diretor artístico da Berlinale, Carlo Chatrian (e por consequência à Cannes e Veneza) sobre a ausência de mais documentários no concurso principal do festival.

Assim, os júris dos grandes festivais parecem querer sinalizar a importância de documentários nos slots principais dos festivais, mas que os programadores de alguma forma ainda permanecem céticos quanto ao seu mérito artístico. Se o filme do francês dará início a algum tipo de mudança nas decisões curatoriais de Berlim, só saberemos no ano que vem, mas para já o que este prémio parece querer sugerir é que algo de muito interessante e revelador está a acontecer por aqueles lados. 

 

Competição

Urso de Ouro: “Sur L’Adamant”, de Nicolas Philibert

Grande Prêmio do Júri: “Roter Himmel”, de Christian Petzold

Prêmio do júri: “Mal Viver”, de João Canijo

Melhor Realização: “Le Grand Chariot”, de Philippe Garrel

Melhor Argumento: “Music”, de Angela Schanelec

Melhor Performance: Sofía Otero, por “20.000 Espécies de Abelhas”

Melhor Performance Secundária: Thea Ehre, por “Till the End of the Night”

Melhor Contribuição Artística: Hélène Louvart pela fotografia de “Disco Boy”, de Giacomo Abbruzzese

Melhor curta: “Les Chenilles” de Michelle Keserwany, Noel Keserwany

Prémio do Júri melhor curta: “Marungka Tjalatjunu” de Matthew Thorne, Derik Lynch

Menção especial (curta): “It’s a Date” de Nadia Parfan

Encounters

Melhor Filme: “Here” de Bas Devos

Melhor Direção: “El Eco” de Tatiana Huezo

Prémio Especial do Júri (ex aequo): “Samsara” de Lois Patiño e “Orlando, Ma Biographie Politique” de Paul B. Preciado

Outros prémios

Prémio de Melhor Documentário: “El Eco” de Tatiana Huezo

Menção Especial: “Orlando, Ma Biographie Politique” de Paul B. Preciado 

GWFF Award para o Melhor Primeiro Filme: “Adentro Mío Estoy Bailando” de Leandro Koch, Paloma Schachmann (Encounters)

Menção Especial: “The Bride” de Myriam U. Birara (Forum)

Prêmio do Público (Panorama): “Sira” de Apolline Traoré

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