Há três anos, quando o austríaco Michael Stütz fora convidado para comandar a seção Panorama, ninguém fazia ideia que uma epidemia global iria pôr o mundo todo em suspenso. Tendo estagiado com Wieland Speck, chefe da Panorama por 25 anos, e ter sido um dos organizadores do Xposed Queer Film Festival, uma das instituições da cena cinéfila berlinense, iniciar as atividades como programador-chefe no meio de uma pandemia mundial não o intimidou muito. A Panorama sempre foi uma das seções mais populares da Berlinale e a única a ter um prémio votado pelo público. Sempre atenta ao temas atuais do mundo, a seção funciona como um reflexo do estado das coisas e do cinema contemporâneo que se faz momento; sem nunca deixar de ser “explicitamente queer, explicitamente feminista, explicitamente político” como se lê na descrição na sua página oficial. No meio dos preparativos da 72ª edição da Berlinale, que arranca amanhã (dia 10), conversamos com Michael Stütz sobre os filmes polémicos deste ano, o estado atual dos festivais de cinema e sobre o futuro do cinema queer.
Desde 2019 você é programador-chefe da Panorama, uma das seções mais populares da Berlinale. O que você trouxe para a seleção nestes últimos 3 anos e o que você gostaria que a seção fosse sob o seu comando?
Eu fui convidado em 2019 para assumir o Panorama, mas comecei minha vida profissional em festivais na mesma seção por volta de 2005. Primeiro como estagiário no Teddy Awards e depois como assistente de Wieland Speck [o anterior programador-chefe]. Portanto, estou há muito tempo associado ao Panorama bem antes de 2019 e aprendi todo meu ofício aqui mesmo. Eu trabalhei em diversos departamentos e portanto conheço o festival como ninguém. Desde carregar DVDs para visionamentos até organizar a agenda de Wieland, eu fiz de tudo um pouco. Isso dá a você uma grande base de compreensão de quão importante é cada pessoa e a sua experiência e o seu conhecimento, para organizar um festival desse porte todos os anos. Eu trouxe certamente uma forma de consciência e apreciação pela tradição do festival e pela sua continuação, mas ao mesmo tempo também sinto a necessidade e o desejo de romper com esta tradição, às vezes, e de seguir seu próprio instinto. Então eu acho que é mais sobre encontrar um equilíbrio, permanecer aberto e ouvir outras opiniões e perspectivas. É prazeroso de ver como um conjunto de ferramentas e práticas pode ser transformado através de discurso produtivo.
A seleção de 2022 é descrita como um “passeio selvagem pelo cinema contemporâneo” e filmes como Happiness, Convenience Store ou Grand Jeté serão certamente alguns dos filmes que causarão muita controvérsia e debate. Parecem escolhas muito ousadas e corajosas para um festival tão político e, arrisco a dizer, “woke” como é a Berlinale. Eu queria saber se esse risco é calculado e como essas escolhas são feitas ?
Seria ingênuo da minha parte dizer que alguns destes filmes com potencial para dividir opiniões me causaria surpresa. Mas é interessante olhar para os três títulos que você mencionou. Convenience Store foi o primeiro filme convidado em junho de 2021 (durante o dia assistíamos aos filmes para a seleção de 2022 e à noite subíamos ao palco para apresentar a edição Summer Special que aconteceu no verão passado). Mas enfim, acho que esses filmes têm uma visão muito particular e todos os seus realizadores, Askar Uzabayev (Happiness), Isabelle Stever (Grand Jeté) e Michael Borodin (Convenience Store) se expõem ao risco e desafiam o público, nos fazendo renegociar o nosso entendimento do que é expressão artística. Eles nos questionam sobre onde está a linha e por que temos de cruzá-las às vezes para podermos agitar as coisas. Acho que constantemente temos de fazer sentido sobre estas questões e estes filmes são, na minha opinião, uma dádiva. E eu acredito fortemente nessas visões e vozes e todos esses títulos foram selecionados porque simplesmente senti a necessidade de incluí-los pelo seu fascínio e admiração e por sua consequência e rigor.
Trailer de Baqyt (Happiness) de Askar Uzabayev, um dos filmes controversos da 72ª Berlinale
Grandes nomes como Céline Sciamma ou Małgorzata Szumowska mostraram seus filmes extensivamente na Panorama antes de se tornarem darlings do circuito arthouse. Lembro também de descobertas como o austríaco Klaus Händl e o seu magnífico Kater (vencedor do Teddy em 2016). Você consegue mencionar filmes ou realizadores que acha que serão os queridinhos dos festivais no futuro ou que merecem ser descobertos?
Temos tantos realizadores em ascensão no programa, o que provavelmente também é algo mais visível nos últimos anos. Não se trata de descobrirmos alguém, é o esforço e o talento que os catapulta para a órbita dos festivais e para o cânone cultural. Tenho certeza que descobriremos vários novos realizadores no programa deste ano e provavelmente iremos ouvir seus nomes nos próximos anos. Alguns podem migrar para outros grandes festivais, outros podem retornar à casa. Veremos. Nosso principal objetivo é oferecer a melhor plataforma possível para esses filmes, conectar realizadores com o nosso público e com a indústria. Eu preferia não ter de escolher uns e esquecer de outros. Também muitas vezes isso é difícil de prever. O mercado e todo o sistema de distribuição, ou como o valor cultural pode ser medido mudou drasticamente nos últimos dois anos. Por isso, acho que é imensamente importante que os festivais não apenas reverenciem e apoiem apenas nomes já estabelecidos.
Na semana passada comemorou-se 30 anos de um famoso painel de discussão que aconteceu no festival de Sundance, em 1992 e que alguns chamaram de o início promissor de um “Novo Cinema Queer”. Um dos temas em debate foi, por exemplo, a problematização na representação de personagens trans em O Silêncio dos Inocentes. Você esteve diretamente envolvido na produção do Teddy Awards por muitos anos, e também com o festival de cinema LGBT Xposed. Olhando para o cenário de filmes queer hoje, parece que uma mudança radical está acontecendo. Até que ponto acha que podemos falar de um novo “novo cinema queer”?
Na minha opinião, o cinema queer sempre evoluiu radicalmente e nos manteve sempre atentos e fora das nossas zonas de conforto. É tranquilizador ver os elementos cinematográficos queer bem representados em todo o festival. As vozes radicais sempre estiveram lá, não é uma invenção dos últimos 30 anos. Cada nova geração se baseia em algo que os influenciou e os capacitou anteriormente. O painel é muito maior e em constante expansão. O que significa é que há uma pluralidade muito maior e muito mais necessária de vozes e perspectivas nos dias de hoje e que são visíveis no circuito. Talvez não tenhamos que pensar muito em rótulos, mas certamente há conexões e afinidades entre o que aconteceu há 30 anos e o que está mudando agora, com uma grande diferença: naquela época eram principalmente homens associados a este termo cunhado por Ruby Rich [organizador do painel e autor do livro “New Queer Cinema”], mas agora vemos um novo capítulo sendo aberto não só em termos de representação, mas também em termos de amplitude de expressões cinematográficas que o acompanham.
Agora falando mais amplamente sobre o mundo dos festivais, a Mubi recentemente publicou um artigo dizendo que os festivais de cinema se tornaram tão cheios de “convenções, alegorias e trends” e que a maioria dos filmes circula apenas dentro desse nicho (ou seja, entre os festivais) em vez de escapar da bolha para um público mais amplo. O que você acha sobre isso? E em termos de escolhas curatoriais, como representação e distribuição podem coexistir?
O artigo que você menciona aborda um festival específico, no ano passado, como exemplo para o que está acontecendo no circuito. Fala sobre filmes especificamente apresentados naquele festival e não sobre a bigger picture. Esta é uma discussão muito complexa e temo que algumas linhas minhas não satisfaçam ou adicionem nada de vital aqui. Também seria preciso olhar para todo o sistema de distribuição e, convenhamos, o circuito de festivais tornou-se num sistema de distribuição próprio. Anos atrás ainda era chamado de sistema de distribuição “alternativa”. Hoje em dia para a maioria dos filmes não há sequer alternativa. Portanto, por que é que filmes estão sendo escritos, financiados, produzidos e filmados, muitas vezes com dinheiro institucional? Quando o valor cultural se transforma em valor econômico na nossa indústria, quais fatores devem ser colocados em prática para que isso aconteça? No momento tudo está muito em movimento e é bom que se levantem questões e se alimentem debates. Não acho problemático que os filmes alcancem uma grande audiência internacional através dos festivais, mas o problema aqui é que há muito pouca receita comercial a ser gerada. Acho que enquanto os sistemas de alguma forma conseguirem se manter à superfície, nada de drástico mudará.