Que filme melhor para encerrar o Queer Lisboa no passado dia 22 do que “Bixa Travesty“, de Claudia Priscilla e Kiko Goifman, um documentário-manifesto que rompe, fere, dilacera e desassossega as normas falocêntricas, a misoginia, a transfobia e a atrofia social em relação à transgeneridade através deste grito de guerra da autoproclamada “terrorista de género” que é Linn da Quebrada?
Cantora e ativista pelos direitos LGBT, Linn, que já foi Lino (o ingénuo Lino como ela lhe chama) e Lara antes de se ter ficado pela sua persona atual, é um dos nomes de peso do movimento trans e feminista brasileiro. Ela encontrou no funk do seu país não só a sua voz, como também a arma que utilizaria para destruir as barreiras do preconceito, ainda demasiado vigente na sociedade contemporânea, e, assim, estimular o debate em torno da identidade de género de forma a exorcizar o fantasma da transfobia e homofobia. Tal como a icónica luva metálica de Linn é símbolo da sua energia e irreverência totémica, o documentário é, para nós, o amuleto que afasta essa intolerância irracional.
Se, por vezes, o ponto fraco do género documental é a impressão com que ficamos da teatralidade dos seus protagonistas, como se estes se representassem a si próprios ao revelar apenas uma parte de si (as suas ideologias, a mensagem que querem passar ao mundo) sem comprometerem o que têm de mais íntimo, de privado, como afirma Slavoj Zizek em “Lacrimae Rerum”, então, de certa forma, Linn da Quebrada elimina por completo essa concepção. Isto porque, sim, “Bixa Travesty” é um documentário-manifesto e, enquanto tal, rege-se por um espírito ideológico que reflete a mensagem da sua protagonista, mas através da vitalidade, da falta de pudor (por vezes gritante) e da energia contagiante dela, o filme rompe com toda essa encenação ideológica e revela-nos a verdadeira Linn.
Mas é normal, até nos documentários mais arrojados, encontrarmos uma certa resistência dos seus protagonistas perante a câmara e o seu voyeurismo. Há sempre qualquer coisa que nunca nos é completamente revelada e, por vezes, isso é palpável. Uma das coisas que de mais íntimo temos é o nosso próprio corpo, que é, no fundo, o verdadeiro protagonista de “Bixa Travesty”.
É raro, portanto, assistir a um documentário em que a intimidade é revelada de forma tão despojada, onde o corpo de Linn é-nos revelado como um território a explorar. Aliás, a própria Linn, da forma provocadora que lhe é característica, desafia-nos a fazer o mesmo com os nossos corpos. O desafio está em ver o corpo como uma promessa de pluralidade, de transformação contínua. E, continuando com o tema da intimidade, Linn mostra-nos o período em que enfrentou um cancro num testículo. Facilmente poder-se-ia romantizar este acontecimento e ver Linn como uma espécie de mártir, e aí tratar-se-ia de um verdadeiro caso de teatralidade sentimentalista, mas, felizmente, não é o caso.
“Bixa Travesty” é, em suma, mais do que uma tentativa de construir e justificar a identidade de género, é a sua desconstrução permanente. Nas palavras de Linn da Quebrada: “Terrorista de género significa ter a minha música como uma arma apontada à minha própria cabeça.” Esta ideia de construir e de habitar um corpo que está em permanente mutação é talvez a expressão máxima de transgeneridade.