É por demais conhecido o impacto, ou melhor, o escândalo que “Branca de Neve” causou aquando da sua estreia, quer por motivos de incompreensão da obra, quer por outros (o suposto “desaparecimento” do dinheiro da subsidiação do filme). Nada disto é, contudo, relevante, nem para mim, nem para o significado ou para o valor da obra que, “abafada” por esse mediatismo ignorante, carece em muitas das visualizações e análises que lhe são feitas, da objectividade e profundidade que merece. Daí que, na analise que se segue, pretenda, acima de tudo, abstrair-me não só desse mediatismo, como de leituras e associações que lhe foram feitas, cujo carácter pretensioso e “intelectualóide” as tornam, a meu ver, fúteis e erradas.
A comparação que fizeram entre o filme e os quadros de Malevich e o seu Suprematismo, embora compreensível do ponto de vista factual, foi recusada pelo próprio João César Monteiro que afirma a existência (óbvia) de uma intenção revolucionária por parte daquele artista, motivada, por um lado, pelos contextos histórico/político (regime totalitário) e artístico (realismo socialista) em que se encontrava, e por outro, por uma suposta insatisfação artística, que o terá levado a cobrir de negro as suas pinturas, outrora figurativas. No seu caso, diz, o realizador, não obedeceu a um “impulso muito vivo” (1), embora tenha sido premeditado “com muito pouca antecedência, porque não era isto que estava inicialmente previsto” (2). O que terá levado J. C. Monteiro a fazer o filme assim é algo que ele nunca explicou, mas que, de qualquer forma, não creio ser da maior importância, pois o que importa realmente é o filme em si: o que é, o que mostra, o que diz, o que significa e o que, em última análise, pretende transmitir. Assim, falar de intenções revolucionárias torna-se algo irrelevante, para mim, pelo menos, perante a obra que é, de tudo, o que mais interessa. Sendo fiel a esta máxima, falemos, então, do filme.
“Branca de Neve” começa com a apresentação de uma errata, na qual se corrige, do discurso do príncipe, a palavra “humanidade” pela de “humidade”, ao que o realizador acrescenta uma nota na qual pede desculpas ao espectador, “aqui e agora transformado em espectáculo”. Começa aqui, desde logo, com esta epígrafe, o interessante exercício de análise que este filme representa. O que pensar, então, destas palavras de J. C. Monteiro, de chamar ao público, espectáculo? Depois de ver o filme, não só o seu significado se torna evidente, como, no fundo, são estas mesmas palavras, uma das respostas à tão badalada questão do porquê do filme ser negro (algo a que retomarei um pouco mais à frente nesta análise).
Àquela breve introdução seguem-se os créditos iniciais, ao som de um”alegre” Rossini e com uma tapeçaria com motivos fantasiosos como pano de fundo; a música pára e a tapeçaria desaparece, dando lugar a fotografias de um homem morto na neve (Robert Walser, o autor do texto do qual o filme é adaptado), a vida dá lugar à morte, tal como, durante o filme, o negrume da imagem é interrompido por momentos de luz e de cor – é esta uma constante na obra de J. C. Monteiro: as variações – “passa do mais rasteiro ao mas sublime” (3), diz João Bénard da Costa a propósito de uma cena em “Recordações da Casa Amarela”; não é só neste filme, contudo, que as vemos, mas em toda a sua obra, embora na “Branca de Neve” não possamos falar tanto do rasteiro para o sublime, mas talvez, de uma coisa para o seu oposto, da vida para a morte, da luz para o escuro, do branco da neve para o negro da tela – a Branca de Neve diz que sim e J. C. Monteiro diz que não.(4)
O filme decorre, então, “em cinzentos” (5), segundo o realizador, e nós (o espectador), como que perante um palco com a cortina por correr, limitamo-nos a ouvir as belas e bem entoadas falas das personagens da história que todos conhecemos: a Branca de Neve, personagem principal, a Rainha, o Caçador e o Príncipe; uma história que todos conhecemos mas que surge, aqui, por assim dizer, desvirtuada: os fatos, as paisagens, as criaturas fantásticas, a aventura, o romance, a vitória do bem contra o mal, tudo aquilo que sabemos de cor desaparece ou melhor, nunca chega a aparecer – somos nós que o temos de o imaginar, daí o sentido das palavras do realizador no inicio do filme, do espectador “transformado em espectáculo”. No fundo, é um jogo entre o realizador ou a obra e o espectador, em que este é obrigado a “fechar os olhos”, a abstrair-se do mundo das imagens, e a entrar no (aparente) vazio da tela que o vai fazer duvidar do seu próprio imaginário.
“Branca de Neve” faz-nos remontar, não só ao mundo do conto tradicional (uma ideia antiga na obra de J. C. Monteiro, de “Veredas” a “Silvestre”), e que surge, aqui renovada, sugerindo uma nova visão das adaptações destes contos, mas ainda aos mundos do teatro e da literatura. Ao mundo do teatro, porque é uma espécie de “teatro filmado”, com toda a mise-en-scène que lhe é própria, mas oculta, o que, reforça, ainda mais, a sua teatralidade; e da literatura porque, como sabemos, todo ele é (somente) falado, assentando assim na linguagem falada como motor e meio de projecção, mas antes disso, de construção. O filme é construído a partir de um texto literário que, através da peculiaridade da sua mise-en-scène, transforma e potencia, recusando a fixação e a “presunção” das imagens, a simplicidade, a pureza e, quiçá, a verdade daquilo que não vemos, mas que somente escutamos. É a própria Branca de Neve que diz ao Príncipe “Não, diz, o que vês? Diz logo. Através dos teus lábios deduzirei o bonito desenho desse quadro. Se o pintasses, por certo atenuarias habilmente a intensidade da visão. Então, o que é? Em vez de olhar, prefiro escutar”.
Mas escutar o quê? Exactamente, que falas é que escutamos em “Branca de Neve”? ou melhor, “que “Branca de Neve” é esta?”, talvez seja a pergunta mais pertinente. É que as personagens deste filme revelam-se diferentes daquilo que imaginávamos; a Branca de Neve não é tão inocente assim (nem o deseja), a Rainha e o Caçador recusam ser tidos por malvados e o Príncipe afirma a sua inocência “eles são maus; eu não sou como eles; logo, eu sou bom”. Mas a questão não é assim tão simples; não há “bons” e “maus” em “Branca de Neve”, pois o conflito reside, precisamente, na sua culpabilidade, na dificuldade em ajuizá-la e na inevitabilidade da sua existência em cada um de nós – no “fracasso do ser individual contra o ser social”; e visto que “o mundo social não hospeda o mundo mítico”, que falseia a realidade.
“Branca de Neve” não poderia ser de outra forma que não “em cinzentos”: porque a realidade não é a preto e branco, é em tons de cinza; porque as pessoas não são 100% boas ou o seu oposto; porque se o filme tivesse imagem, veríamos a cara das personagens, e (porque o bom normalmente é belo, e o mau é feio), o jogo estaria corrompido e tudo o que o filme potencia estaria perdido – “Branca de Neve” é a desmistificação da mentira do conto tradicional e a confirmação da impossibilidade de voltar ao mundo da fábula, da infância.
(1) Retirado de “João César Monteiro – Entrevista [Branca de Neve (2000)] 1/4”
(2) Ibidem
(3) Retirado de “João Bénard da Costa sobre João César Monteiro 2/2”
(4) Alusão à cena final do filme em que o realizador aparece e diz, mudo, “não”.
(5) Retirado de “João César Monteiro – Entrevista [Branca de Neve (2000)] 1/4”