Poder-se-ia dizer que Ele (Carloto Cotta) não existe. Como também se poderia afirmar que Ele é duas vezes personagem: leva a cabo a função diegética de ser personagem do filme enquanto elemento central dessa diegese – aquele que se relaciona com e se efetiva a partir das memória que têm dele cinco mulheres que assim o fazem – e tem a meta-função de ser personagem que, de dentro do filme – da diegese passada – vem a se apresentar e a assombrar a vida da sua própria criadora literária, Dulce (Luísa Cruz). Sim, porque aí ele é três vezes personagem: é criatura literária feita criatura cinematográfica e uma outra meta-função, a de ser agente intermedial entre a Literatura e o Cinema. Ainda mais se pode dizer que Ele é um espectro fílmico, entra e sai do filme, começa-o e acaba-o, traz, leva e deixa nele o sangue, espalha-o, dilacera e esfaqueia para o soltar e esguichar, e com ele e a sua cor mancha o ecrã final deste Campo de Sangue. Seja então ele dividido: o Ele-Personagem e o Ele-Espectro.
O primeiro Ele é uma indefinição existencial, um produto ambulante da sua própria ineficiência humana: sustentado pela ex-mulher, Elsa (Suzana Borges), é um vagueante e um observador, um buscador de um algo que lhe é sempre inatingível, e que está sempre longe, a satisfação e o completamento. João Mário Grilo fá-lo sofrer, ao colocar a sua câmara – ela no lugar do olho observante d’Ele-Personagem – de uma tal forma a não o deixar ver a face da Rapariga Loura (Júlia Palha) e a uma distância tal que lhe torna impossível a aproximação. Ele bem a olha – o que a câmara o deixa, pelo menos – mas ela lá se vai, formosa e dourada, em direção do mar.
A precariedade da sua seguinte demanda é total: como poderia ele encontrar essa mulher bonita se realmente nunca a viu, de modo a poder reconhecê-la? Só mesmo a obsessão o poderia mover e fazer constituir um método de investigação obtuso – e algo insano, se pode acrescentar – de aproximação descarada a uma dada e qualquer mulher, para resolutamente afirmar que é ela “aquela” que um dia encontrou na praia (o que realmente nunca chegou a acontecer, já que ele só lhe viu o corpo em silhueta). Entre a incapacidade de compreender a inépcia do ato e o incómodo que ele causa, Ele-Personagem repete a façanha as vezes suficientes até poder encontrar a Rapariga Bonita (Sara Carinhas), a qual participa voluntariamente no estranho jogo e aceita ser aquela que ele procura – sem ser nem loura, nem voluptuosa como a procurada – e, mais ainda, se deixar levar para um caso amoroso com o nosso desequilibrado Ele. Claro é que mesmo comportamento obsessivo prossegue. Ele toma ou tenta tomar posse da vida da Rapariga Bonita, ela que também é figura de insatisfação: procura igualmente, encontra, enfada-se, quer o novo, e por fim, abandona e foge.
O crime que faz o enredo do filme que é sobre o ato de personificar, fazer a personagem e fantasmá-la, é horrendo, loucamente horrendo: ElePersonagem, num assomo de insanidade, mata selvaticamente – ele que afinal parece procurar, literalmente, um coração que possa tomar – e a golpes fortes, perscrutantes, batidos e muito audíveis, a insuspeita Vendedora (Mafalda Marafusta), azarada, confundida por quem não era e figura representativa de quem Ele nunca pôde compreender: a Mulher.
Pois este é também um enredo de mulheres, mais não fossem elas quem constrói a qualificação psicológica d’Ele. Entre as possessões impossíveis, os usos e mentiras, presunções e inanidades, o tecer dessa personalidade imperceptível desenha-se sob a forma de uma existência vazia e melancólica, como se o ato extremo levado a cabo mais não tivesse sido do que a comprovação – pelo próprio, e como uma derrota completa – de que essa sua não compreensão do feminino mais não seria, por sua vez, do que a a impossibilidade de nelas conseguir encontrar um reflexo do que ele lhes poderia dar: a instabilidade inócua.
Ao desenharem-no como uma falha de si mesmo – ele que nunca se pretendeu mostrar, ou mostrou, como mais do que isso – as cinco mulheres construíram-no como uma imagem triste da sua existência inexistente de personagem mentalmente perturbada e de atuação perturbadora. Restantes e para o Médico (Adriano Luz), ficam as imagens-vídeo da imagem arquitetada de um instável inócuo, que por se saber como tal assim tanto, teve o assomo – instável, pois – de ser selvático, monstruoso e matador. Uma sexta mulher sempre lhe foi um espectro também: a sua escritora. Ela esteve sempre perto, fazendo-o ir para ali e para acolá, vendo-o e escrevendo-o. Aquela que cria a criatura, que faz a personagem e a assombra, tem como fruto perverso da obra, uma mais terrível criação: o Ele-Espectro, divisão inaudita da personagem que criou atormentada e ainda mais atormentou, e que regressa – with a vengeance – como um segundo grau de loucura, uma cria da imaginação que nunca poderia ser imaginada, mas que assim é feita nascer pelo cineasta João Mário Grilo, na sua meta-função de arquiteto deste jogo de personagens, espectros, criadores e criaturas, com o fito de pôr em dúvida as lógicas da construção dos modos e mundos da ficção intermedial.
Pois se o espectro de uma personagem que não foi escrita para que tivesse um, se escreve e filma como personagem em si mesma, que mais outras perversidades poderão ser cometidas, pelo espectro-cinema a partir da criação-literatura? Talvez o que nos diz João Mário Grilo é que não há problema em levar a cabo tais “jogos perversos”, já que o Ele-Espectro é figura que acresce à parte que fantasmou: não é inócuo, é exato, sabe o que faz, não desenha finamente a tons de verde, é antes verdadeiro sangue. Ele que é fantasma da fantasmagoria da escrita, é cine-personagem, uma personagem-slasher que rasga, mata, e uma que só o Cinema poderia criar para além de qualquer crença no impossível.
No fim, o seu espectro até do filme se liberta, indo, incógnito e desconhecido, na direção do fora de campo. De regresso ao livro? Para uma outra estória? Talvez a escritora saiba. Talvez o realizador faça depois um filme.
© 2022 Luís Miguel Martins Miranda