Na ficha de divulgação do plot de “Oranges Sanguines” (“Bloody Oranges”), que passou fora de concurso numa sessão especial da meia-noite, lê-se que se trata da história de um casal de reformados (Lorella Cravotta e Olivier Saladin) a tentar vencer um concurso de dança para pagar uma dívida enorme juntos as finanças. Ou isso ou perdem a casa. Este é, de facto, um dos fios narrativos que o filme do francês Jean-Christophe Meurisse segue, mas é só uma pequena parte deste filme selvagem que promete ser um dos acontecimentos desta 74.ª edição do festival de Cannes.
Para além do casal de reformados, que de certa forma guia a narrativa, o filme apresenta uma série de personagens que habitam semelhantes cursos na história. Tem um ministro da defesa envolvido em corrupção, uma personagem que de tão errática, acaba por ter um desfecho muito semelhante ao daquele primeiro ministo de um já icónico episódio de “Black Mirror”, onde o político vê-se obrigado a ter relações sexuais, em direto na televisão, com um porco. E é neste mesmo clima de “terror da atualidade” da série de Charlie Brooker que o filme francês vai se desenvolvendo, fazendo uma estranha mistura do absurdo com o assustadoramente real.
Mais histórias seguem em paralelo. Tem também a do jovem advogado que quer subir na carreira, mas que é “modesto demais” para o cargo, como um colega o acusa. É a personagem mais desinteressante do filme e que é orquestrada com o intuito de mostrar o desprezo do filme para com a elite, um dos seus temas, mas por conectar todas as outras histórias, é a presença com mais tempo de écrã.
E por fim a história mais aterradora, que é o centro do filme, e que fecha esta coleção de contos da cripta, a da jovem que é vítima de estupro e resolve vingar-se do seu algoz. É um comentário que, mesmo destrambelhado, parece querer flertar com o movimento feminista. Apesar de a jogada parecer oportunista, é um dos pontos mais pujantes do filme e onde o realizador quer provar um ponto: a violência está em todos nós. No entanto, quando se chega a esse momento, um negrume desesperador se instala e já não há escape.
A ideia do filme veio depois que o realizador leu um artigo sobre uma rapariga que torturou o seu violador por várias horas nos Estados Unidos. Meurisse queria filmar o seu fascínio – e o nosso – pelo monstruoso. A constante batalha entre o bem e o mal que habita dentro de nós. Em questão de momentos uma mesma personagem pode ir de vítima ao mais terrível dos carrascos. Somos levados nos braços até aqui, para depois sermos despejados no mais absoluto caos. Tudo temperado com muito cinismo, cozinhado em lume brando, até o seu final explosivo.
Este emaranhado de histórias, no melhor estilo Altman, pouco a pouco vão se entrelaçando (mas nem sempre) e vão dando sentido umas às outras. A cada novo grupo de personagens que o filme apresenta, uma chuva de diálogos é despejada à velocidade da luz, e assim, abrindo passagem para os temas centrais do filme. A quantidade de diálogos, aliás, pode ser um tanto intimidadora, e algo irritante, diga-se, de tão mastigada e on the nose que às vezes chega ser. É como se o realizador tivesse medo de perder o espectador a qualquer instante. Não chega a comprometer o todo, mas distrai e arrefece um pouco o seu impacto.
O genérico abre com os jurados do tal concurso de dança a tentar chegar num veredito para escolher três casais finalistas. Enquanto discutem os prós e contras dos participantes, discorrem sobre temas tabus como deficiência física, racismo, poder e misoginia. Um membro do júri acusa o outro de favorecer um casal onde um deles tem uma deficiência física nas pernas. “Eles já têm um espaço exclusivo para eles nos estacionamentos”, um deles justifica. Há uma interessante discussão aqui sobre o quão verdadeiro é o nosso senso de justiça. O filme também quer espelhar essas contradições de volta, sempre puxando os limites e questionando a nossa mania de superioridade moral.
A certo momento o écrã se divide em dois, em momentos à Brian de Palma, e é como se nos dissesse que aqui habita mais que um filme. Entra-se num e acaba em outro. Começa como uma comédia de gags falastrona, que traz a memória outro filme francês recente, “Apaga o Histórico” (Benoît Delépine, Gustave Kervern), esse também interessado em dilacerar uma sociedade falsa e corrupta, e vai se tornando numa sátira de costumes, a cutucar os códigos sociais que guiam o politicamente correto atual, para acabar num filme malvado, repleto de gore, mutilações, escatologia, suicídio… e de um humor negro que faria corar Gaspar Noé.
Para chegar nesse clímax, o realizador engana e frustra o espectador. Mas no bom sentido. Cria-se uma espécie de cumplicidade, onde se forja uma teia de situações com o intento de expor as hipocrisias atuais e assim, forçar uma relação de empatia. Para depois ir logo desenvolvendo um crescendo de situações absurdas até atingir o seu auge aterrador e pós #metoo. Meurisse brincou com os monstros que habitam em nós e agora poe eles todos à mostra.
Queremos cobrir a cara com as mãos, mas assistimos até o final por entre os dedos, em completo terror e êxtase, por que o fascínio por este circo de horrores é mais forte do que conseguimos admitir.