Estreado no Festival de Cinema de Locarno, que tinha como uma das linhas programáticas o uso de IA (Inteligência Artificial) no cinema, a última obra do realizador português Edgar Pêra são várias coisas numa só. Dificilmente se caracterizaria esta obra como cinematográfica, no entanto e tendo em conta a quantidade de efeitos especiais, pós-produção e ferramentas de IA que já são utilizadas em outros filmes que não temos preconceito de assumir como cinema, Edgar Pêra assume corajosamente uma obra totalmente gerada com ferramentas IA. Vale pontos a não tentativa de enganar o público. É assumido como tal, é um exercício, é algo que está deixado em aberto pelo próprio realizador ao titural como filme inacabado e com “to be continued” no final do filme. Deixa uma porta aberta para um filme futuro (já que termina com a introdução a um próximo filme), mas que ao mesmo tempo pode ser um questionamento sobre a finalização de uma obra ou o seu sentido inacabado como génese.
O realizador é já conhecido por quebrar barreiras, por empurrar limites. Parte de uma série hipotética de correspondências trocadas entre Fernando Pessoa e H.P. Lovecraft. Dois escritores que viveram e trabalharam aproximadamente na mesma altura, mas que se mantiveram separados pelo Oceano Atlântico e provavelmente nunca se cruzaram, mas formam a base deste fascinante drama documental experimental em que Pêra elabora uma exploração peculiar e inquietante da arte, da literatura tal como ele pode imaginar a forma como seria vista da perspetiva dos dois autores. Arrastados pelos imaginários de terror, do macabro, pelas heteronímias e pelo fascínio pelo oculto.
O filme é uma sandbox pouco ortoxa, criativa, surrealista, um conjunto de artes a produzir um objecto. Qualquer nova tecnologia é inicialmente vista como uma ameaça ao status quo. Preocupa-me essencialmente a sua intromissão no social e na realidade com a alteração da verdade. Preocupa-me que o cinema se possa tornar uma indústria de uma espécie de fordismo digital de scripters que se alimenta na verdade de trabalhos criados por outros em amâlgamas disformes mas fáceis de consumir. Não é de todo o que vejo neste trabalho do Edgar Pêra. O IA surge aqui como uma ferramenta, como o 3D ou como a animação digital.
“Cartas Telepáticas” é mais uma confirmação da criatividade inconformada de Edgar Pêra. A mistura de dois ícones literários clássicos mas que também eles rasgaram barreiras da imaginação com a tecnologia IA, leva Pêra a uma boa homenagem e a criação em Portugal para um novo patamar.
