“Uma pequena silhueta patética e mal vestida, um chapéu de coco amolgado, umas calças largas, um botão de bigode, uns sapatos enormes e uma bengala pretensiosa”. Falo de Charlot, o vagabundo, uma complexa personagem que é parte patife, parte figura patética, parte herói, parte romântico, parte crítico social, parte cavalheiro, parte poeta, parte sonhador. Este, é o meu Charlot!
Autor do texto: Daniel Rodrigues, autor do blog Magazine.HD
Tinha cerca de dez anos de idade e frequentava um ATL que promovia as mais variadas actividades extracurriculares no tempo das férias de Verão. Naquele dia, como em todos os restantes dias de um Verão igual a tantos outros, depois do almoço era hora de fecharem as crianças numa sala para que estas pudessem digerir a refeição e para que relaxassem de uma manhã estafante. A sala era apenas preenchida por um móvel, uma televisão, um leitor VHS e dezenas de almofadas espalhadas pelo chão. Durante hora e meia, passava um filme aleatório que poucas vezes captava a nossa atenção dado que estávamos sempre mais concentrados em pensar no que iríamos fazer a seguir do que em absorver o pequeno pedaço de arte que estava mesmo à frente dos nossos olhos. Era a pior hora e meia do nosso dia, sem sombra de dúvida.
Num desses dias, passou “The Kid”. Naquela idade, todos sabiam quem era Charlot, mas muito poucos de nós tinham tido a oportunidade de o descobrir. De cartola arredondada pousada na cabeça, bigode curto que nos remetia para Hitler, sapatos bem maiores que os pés, calças largas e bengala que corrigia um jeito invulgar de caminhar… lá estava ele. Éramos jovens demais para absorver os pormenores, mas já seríamos suficientemente grandes para esboçarmos sorrisos de orelha a orelha e para termos os olhos a brilhar de felicidade. Charlot surgiu ao princípio daquela tarde de Verão num filme a preto & branco (sempre foi sinónimo de algo entediante) mas contagiou o nosso dia com alegria, mais do que qualquer outro filme aleatório que tenhamos visto naquela sala durante aquele Verão.
Terminada a sessão, saímos ordeiramente da sala e esquecemos o que vimos. A vontade de brincar com jogos de tabuleiro, saltar à corda ou jogar futebol fazia-nos esquecer de tudo o que se passava naquela terrível sala, fosse que filme fosse. E com isto, acabei por guardar involuntariamente Charlot numa daquelas gavetas onde se guardam as memórias que não queremos recordar.
Mais de dez anos depois, numa fase da minha vida onde o Cinema já não era sinónimo de tédio, descobri Charlie Chaplin e redescobri Charlot. Comecei por me deliciar com “City Lights” e “Modern Times” e, enquanto os via, tinha a certeza que em algum momento da minha vida já tinha privado com aquele estranho personagem, mas não sabia em que circunstâncias. Foi então que decidi rever “The Kid” e depressa revisitei a minha infância. Quando pensava que iria ver mais uma daquelas obras-primas que nunca antes tinha visto, a gaveta abriu-se. Recordei os sorrisos de orelha a orelha e dos olhos brilhantes de felicidade. Delirei com aqueles gags hilariantes, emocionei-me mais do que era suposto e agora, mais adulto, consegui ler as entrelinhas.
Olho hoje para o passado e julgo-me por abraçar as futilidades da infância em detrimento dos filmes que as educadoras nos obrigavam a ver. O que só corrobora a célebre frase inserida no estupendo discurso do “The Great Dictator”: “We think too much and feel too little”. Por certo, teria descoberto Charlot mais cedo.
Contudo, é por ter ignorado a genialidade de Charlot que ele hoje me é tão íntimo. Por cada passo desajeitado que ele dá, eu recordo-me de mim. É como se ele fosse um daqueles amigos de infância que já não vemos há imenso tempo e que de repente o encontramos na rua. Mais do que pobre, cavalheiro, operário ou simplesmente vagabundo, Charlot foi e sempre será um verdadeiro amigo.
Obrigado,Daniel Rodrigues, pela colaboração.