A vida dos conceitos também pode ser breve e mesquinha, como a das pessoas. Em boa verdade, a coisa decide-se logo no nascimento. Aos conceitos que por azar nos chegam do marketing e não da filosofia, espera-lhes uma saúde débil, se não mesmo fatalmente comprometida. Veja-se o caso do “novo normal” – duas palavras engolidas pela mesma máquina mediática que as cuspiu cá para fora! Sob pena de que alguém algures se lance, com justa indignação, na escrita de um artigo de opinião contra o uso deste conceito, vamos ressuscitá-lo, ou pelo menos a perplexidade que lhe está subjacente. É sobretudo conveniente na medida em que nos permite dar conta de imperceptíveis rupturas – normais novidades – na história dos nossos hábitos e afectos.
Eis um exemplo de uma tal ruptura: quando vi “Tenet” (2020), de Christopher Nolan, surpreendeu-me a desoladora, quase extraterrestre ausência de risos na plateia. Recordo que a dada altura do filme uma das personagens declara, com uma urgência muito convincente, muito diegética, que um determinado acontecimento X terá como consequência “a aniquilação de todos os seres que alguma vez existiram e existirão”. Ao que outra personagem (que, tanto quanto o guião deixa saber, é uma mulher e tem um filho) responde, angustiada: “incluindo o meu filho!…” Foi exactamente isto, uma das deixas mais absurdas de que tenho memória – e não se ouviu um único riso na sala. Parece que nos acostumámos a esta existência abstracta dos seres humanos nos filmes de Nolan: são objectos prontamente identificáveis na sua ligação a outros objectos. Sem dúvida, o argumento de Tenet está mais próximo do mapa de rede do metro de Lisboa que de qualquer texto literário. Para que o espectador não se perca nas complicações lineares do cinema de Nolan, é preciso assegurar a absoluta equivalência e permutabilidade das entidades postas em cena, é preciso lembrar, sempre que possível, as causas (motivações) de cada efeito (acções), sendo que as primeiras, por via americana (despolitizada), só poderão situar-se na família – um filho, uma filha, ou frequentemente, uma falecida esposa (casos Inception, Interstellar, Memento…). Quem é esta personagem, espectador distraído? Uma mãe que é uma mãe, pois claro: uma mãe redundante. Por que está ela onde está, a que se deve o seu movimento? Ela mesma faz questão de o anunciar: “Incluindo o meu filho!…”
Que ninguém se ria disto é certamente um novo normal. E é a prova do sucesso de Nolan enquanto “autor”, no sentido mais pobre da palavra. Prova que ele soube impor-nos a sua coerência cinematográfica, que depois aprofundou a um ponto de sublime imperceptibilidade. É verdade: por norma não o percebemos como um cineasta de “distopias” (outro frágil conceito do marketing), e todavia, é evidente que Tenet decorre no mais negativo dos mundos possíveis. Um mundo de não-experiências (missões, tarefas, trajectórias) em não-lugares (hotéis, barcos, armazéns, auto-estradas… estão lá todos). Um mundo que, é preciso dizê-lo, antecipa o coronavírus na sua política anti-corporal: as personagens de Nolan são pouco mais que cérebros sobredesenvolvidos, terminais em permanente comunicação com um motor de busca universal. Chega a ser aflitivo vê-las vomitar factos sobre a queda da União Soviética, o projecto Manhattan, as leis da Física, e o próprio universo ficcional no qual habitam – sem atritos, sem controvérsia. São descargas compulsivas de informação que não alcançam sequer a superficialidade melancólica, pós-moderna, pós-Wikipédia, de um Houellebecq; têm antes aquela reverência bronca e bruta pelo Conhecimento com C maiúsculo, própria de um quiz show ou de um Dan Brown.
Porém, o cinema de Christopher Nolan parece-se muito pouco com um humilde exercício de divulgação científica. É, aliás, na arrogância que reside a chave do seu sucesso, a arrogância enquanto excedente afectivo do trabalho de uma inteligência artificial, aqui entendida em dois sentidos. O primeiro, menos interessante, é o do próprio artifício da inteligência. Nolan quer proporcionar ao seu público o espectáculo do pensamento, descartando, é claro, as grandes dificuldades e os grandes perigos intrínsecos ao acto de pensar. Da inteligência, este cinema conserva pouco mais que a sua caricatura aliciante, a auto-satisfação do bom aluno – porque, não tenhamos dúvidas, o espectador ideal deste género de filmes é o estudante que responde servilmente às perguntas que lhe chegam vindas de cima, do mestre-escola (lugar transcendente que Nolan de bom grado ocupa). Aí está o novo normal na ficção: tornámo-nos alérgicos à natureza problemática da realidade, ao seu fundo indecidível. Dêem-nos antes um quebra-cabeças, um nó, um questionário, enfim, uma pura forma que possa ser resolvida, ou que pelo menos encontre num infinito processo de resolução a sua razão de ser. A relação estética vê-se assim abolida e substituída por essa outra coisa, bem mais estranha, que é a competência. “Entendeste o filme?” – perguntamos, entre sorrisos (e distâncias de segurança), à saída da sala de cinema.
Tal inteligência artificial, ainda que encontre no cinema de Nolan o seu paroxismo, está longe de lhe ser exclusiva (a este propósito, o nome Charlie Kaufman também podia fazer soar alguns alarmes). Intriga-nos muito mais, então, o segundo sentido, propriamente científico, deste par de palavras. Não se adivinha, em filmes como Tenet ou Inception, um movimento narrativo que é de uma autonomia obscena, uma inteligência de facto artificial, que dispensa por completo a presença de um espectador humano? No limite, cada cena de Tenet codifica as que lhe antecedem e as que estão por vir, de tal modo que a competência de que há pouco falávamos seria apenas o reflexo, no público, de uma descodificação que já está sempre a decorrer num nível superior, maquínico. Terá sido inventado o blockbuster que se vê a si mesmo? Não, ainda não – adivinha-se, pressente-se, Nolan falha por pouco, mas falha todas as vezes, inequivocamente.
É que não se pode dizer sobre o realizador de Tenet o que Rivette dizia de Kubrick, que dá gosto ver a máquina a filmar outras máquinas. Isto porque Nolan sente a necessidade de tudo reconduzir ao humaníssimo melodrama, por mais esquemático que este se torne; não se consegue ver livre do “poder do amor” e de outros confortos poéticos que no cinema dele não são senão afectações. Seria de esperar que uma das suas influências, Michael Mann (um muito melhor cineasta, diga-se de passagem), o tivesse ensinado a procurar o rosto humano nas luzes da cidade e a música nos motores dos carros. Não é o caso: Nolan não está disposto a abdicar dos violinos e grandes planos. Mas se lhe interessa, afinal, a microfísica das relações sentimentais; se, no fundo, ele ainda quer estar do lado dos homens (e não das metralhadoras ou dos aviões), que ao menos aprenda a filmá-los como filmaria uma equação matemática. Senhor Nolan, é preciso ir um pouco mais longe.